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quinta-feira, 27 de maio de 2010

Um toque de brasilidade


Essa tecla a qual bato agora já foi tema de meu artigo anterior, mas acho interessante abrir uma nova linha de discussão baseado num levantamento feito pela Mayre. Pois mais do que uma influência visível através do consumo de produtos estrangeiros, o que eu noto é que essa influência estrangeira em nosso país a travessou fundo a esfera econômica e nos atinge no cotidiano. Ela está incrustada em nossa sociedade: na forma como falamos, em como vemos o mundo e etc.
Mas qual o problema disso? Bem, dependendo da pessoa podemos citar vários, mas esse não é o objetivo desse artigo e sim, observar como essa influência não só está presente no que compramos, como também em como nos portamos e no que produzimos.
Sobre o dia a dia, temos inúmeros exemplos, desde nosso linguajar que adotou inúmeras expressões em inglês como OK, Anyway, but, what, e outras como nas lojas e em nomes de produtos brasileiros. E eu não me refiro aqui às empresas multinacionais, pois a estas sim é normal venham com o nome de seu país de origem, mas sim das nacionais, que adotam essa nomenclatura como forma de se tornarem mais chiques. A academia é um bom ligar aonde se observar isso, pois só perto da minha casa eu já vi nomes como Body Up, Body shape, Body fit, e outras. E a coisa vai ainda longe.
Mas agora vamos partir para a produção literária e, em especial, a fantasia, que são os temas centrais que criaram esse blog. A idéia de escrever esse artigo já me ocorreu há muito tempo ao analisar outras obras de iniciantes como eu. Uma vez, li uma história ambientada no Rio de Janeiro e me assustei com os nomes encontrados: Noah, Billy, Zac, Emily e outros mais. (P.S. Eu não me lembro exatamente dos nomes, mas a coisa foi por aí. srrs)
Definitivamente, a cultura estrangeira está impregnada em nossas veias, pois até quando pensamos em nomes para por em nossos personagens somos tentados a puxar um timbre estrangeiro de modo a dar um grau de requinte a ele. Na verdade, não só no nome dos personagens, até nos nomes dos nossos filhos (Afinal, eu me chamo Willian. Rsrsrs^^) Engraçado isso, não acham? Eu mesmo, olhando nos últimos dias meus velhos cadernos de RPG, observei os nomes antigos de meus personagens e me impressionei com tantos Brians, Tons, Willys que vi ali. Mas na época aquilo era tão normal para mim. Era como se os nomes como Carlos, Vitor, Felipe não fossem tão atraentes ou tivessem algo de pouco nobre. Hoje eu rio muito disso.
Outra questão também bastante legal — e essa é um tanto polêmica, pois vai de encontro aos meus próprios gostos — é a questão da nossa mitologia importada. Pois cada vez é maior os mitos estrangeiros em nosso dia a dia, em nosso imaginário. Mitos esses importados, mas que já fazem parte de nossa vida. Quase podemos nos identificar com ele, sentindo-os como pertencentes de nossa nação.
Eu já disse uma vez — se não me engano, no meu primeiro artigo postado — que muito além de historietas ou mentirinhas contadas para as crianças, os mitos são formas de ver o mundo. Foi como forma dos antigos interpretarem a realidade que eles criaram os mitos. Uma forma de dar sentido, de gerenciar o caos e também, por que não, para dar identidade. Sim. Mitos criam identidade, pois é através da tradição que deles nasce que um povo se reconhece como tal. Mas o cômico nessa história toda é que hoje em dia, esses mitos ultrapassam as fronteiras de um povo e hoje são comunitários, divididos na nossa grande nação global.
E nesse sentido eu falo mesmo de bruxas, vampiros, fadas e mais e mais. (Hehe. Bem, acho que agora vocês entenderam por que eu disse que o tema é polêmico. Pois eu também amo esses mitos e eles já estão tão presentes na nossa sociedade é que difícil os vermos como algo pertencente à mitologia de outros.)
Para encerrar, o que irei dividir agora é um projeto futuro meu, mas que pode ser abordado por qualquer um interessado no assunto: o folclore brasileiro. Eu sinceramente estou muito interessado em escrever alguma fantasia que gire por esse tema. E para isso pretendo, em breve, começar a ler um pouco de Luis Câmara Cascudo, grande estudioso brasileiro do tema – e aqui vai a dica para quem se interessar pelo tema.
Bem, acredito que de todos os artigos por mim postados, essa será o que terminará com a maior lacuna, pois, de fato, não o escrevi pensando em propor nada de concreto. Não quero gerar uma revolução ou desabafar uma angustia profunda. Só queria expor algo que está de tal forma na nossa cara, mas que poucos nos permitimos perceber.
Boas leituras a todos. 

quinta-feira, 20 de maio de 2010

A difícil tarefa de se vencer o estrangeiro em nosso próprio território


O assunto do qual vou tratar aqui já foi discutido repetidas vezes em diferentes tempos, mas não custa nada dar uma reforçada. Sem querer ser nacionalista ao extremo, ou adepto de teorias conspiratórias de que as potências estrangeiras façam lavagem cerebral em nós para que compremos seus produtos, mas acho que ninguém pode negar que a produção nacional continua terrivelmente desvalorizada perante a produção estrangeira.
Falando de arte, temos muitos e muitos exemplos. Os milhões que pagamos por ano para que algum músico ou banda venha aqui para tocar uma única vez. Os besteiróis americanos que permanecem em cartaz em nossos cinemas por meses ininterruptos enquanto bons filmes nacionais duram no máximo poucas semanas. E também as editoras brasileiras que insistem em publicar traduções de Best-sellers americanos ou europeus enquanto temos inúmeros autores no nosso país que não encontram chance.
Como minha proposta no blog é discutir literatura, vou dar ênfase à questão dos livros. Eu compreendo perfeitamente que uma editora, seja ela qual for, é uma empresa. Logo, assim como todas, ela tem um objetivo claro: o lucro. Ela tem que se manter, ela tem uma folha de pagamento para cumprir, e como todo o bom negócio, tem que garantir a seu dono uma receita favorável.
Olhando as coisas por esse ponto de vista, é óbvio que se torna muito mais rentável, por possuir uma margem de risco menor, investir em um livro que já fez sucesso em algum outro lugar, que tem um marketing pronto, um público alvo. Isso se torna mais interessante do que pegar um trabalho do zero, tendo que criar para ele um estilo próprio, uma estratégia de propaganda própria e ainda correr o risco de ele não ser aceito. Porém, essa questão ainda não me parece suficiente para justificar o mal trato com a produção nacional que vemos claramente em nosso país.
O fato é que nossas editoras — não digo todas, mas um número considerável — não parecem prontas para competir no mercado. Quando digo isso, não quero dizer que não tenham capacidade, mas se encontram constrangidas ou com pouca coragem para isso. O mercado exige riscos, exige destreza de quem nele se lança, exige que o empresário esteja disposto a tentar inovar, investir, e, aí sim, lucrar.
As editoras internacionais sabem disso e por isso encontram coragem para pegar um autor novo, mas que, em sua visão tenha potencial, e investir nele. Criar um marketing próprio, uma estratégia de venda. E é isso que garante e a elas a primazia em alguns mercados. O que seria de J. K. Rowling hoje se na Inglaterra as editoras preferissem traduzir romances alemães ou franceses ao invés de investir na produção nacional? Bem, provavelmente o mundo jamais conheceria Harry Potter.
E o que será que acontece aqui no Brasil? Quantos talentos podem estar sendo desperdiçados por conta da falta de investimento? Mas quando falo de falta de investimento, não digo que a culpa é única e exclusivamente de nossas editoras, mas trago um pouco da responsabilidade para nós leitores também. Pois quantos de nós já não torcemos o nariz quando ouvimos falar sobre alguma produção nacional? Seja na literatura, na música ou no cinema — neste último, eu diria que a coisa é mais visível.
É claro que para nós leitores a produção estrangeira é muito mais acessível. Não estou dizendo o contrário. Elas são normalmente mais baratas, pois são publicadas em editoras de grande tiragem. Elas estão em toda a parte: nas vitrines, nas partes mais visíveis das livrarias. Mas isso também não justifica. Pois não é trabalho nenhum tentar buscar algo para além do que nos é basicamente empurrado.
Nelson Rodrigues uma vez disse que o brasileiro sofre de um grave complexo de Vira-lata, pois sempre se vê como inferior, sempre acha que o que vem de fora é melhor, que nossa produção jamais poderá chegar aos pés do que é feito nos EUA, Inglaterra, França, e Cia. Confesso que não discordo completamente dele. Não quero dizer com isso que devamos boicotar a produção estrangeira. Temos em nossa cabeça que tudo o que vem de fora é bom e tudo o que vem de dentro é ruim, mas eu não quero que tomemos o partido contrário. Trocar um extremo pelo outro não é minha intenção. O que eu proponho aqui é uma justa medida. Saber valorizar. O que eu trago aqui é uma volta do ideal do movimento antropofágico: mastigar, digerir e aproveitar do estrangeiro, apenas aquilo que dele presta e desprezar o que não presta. Valorizar sim a produção nacional. Mas não toda e qualquer, e sim as boas. Reconhecer que nela também temos pérolas que devem ser valorizadas, ou ficarão para sempre dentro da ostra.

Para encerrar minha linha de raciocínio, chamo a atenção para um escritor que é de conhecimento nacional e mundial: Paulo Coelho. Esse autor é extremamente criticado por muitos brasileiros. É chamado de literatura comercial – Engraçado que muitos que dizem isso são leitores de Agatha Cristie, Stephanie Meyer, J. K. Rowling e Meg Cabot que também são literaturas comerciais — de escritor de livros de auto-ajuda, ou de afrancesado. Esse último estigma é o que me chama mais a atenção, pois ele se baseia no fato de que Paulo Coelho, mesmo sendo brasileiro, vive na França e escreve usando muito do cenário europeu e que por isso ele estaria traindo o Brasil, esquecendo-se de suas raízes. Agora pensemos francamente: quem de nós no, lugar dele, não faria o mesmo?
Vamos nos colocar no lugar: Somos autores altamente criticados em nossos países de origem, menosprezados, alvos de inúmeras críticas. Porém, em contrapartida, se encontramos num país estrangeiro, um lugar aonde as pessoas nos tratam como reis, aonde somos elogiados, valorizados. Aonde ganhamos inúmeros prêmios e nosso trabalho é reconhecido. Em que pais você escolheria ficar? Francamente, acho que a resposta não é muito difícil.

Esse é um exemplo interessante, pois mostra, para mim, como nós mesmos não vemos nossas próprias pérolas e que, muitas vezes, precisamos que elas sejam descobertas em outros lugares para que possamos enxergar.


quinta-feira, 13 de maio de 2010

A ascensão do Anti-herói


Antigamente, era mais fácil sabermos para quem iríamos torcer enquanto líamos um bom livro ou assistíamos a um filme. Os papeis eram claros, os personagens definidos. As disputas entre o bem e o mal eram claras e nós sabíamos exatamente aonde nos posicionarmos: no lado certo. Mas hoje, creio eu que a coisa anda um pouco diferente. Pois a cada dia que passa, os vilões se tornam mais e mais atraentes enquanto os mocinhos são apresentados de forma mais enfadonha, perdendo a força para os sádicos, sarcásticos e hilários antagonistas.
Um bom exemplo dessa nova tendência é o filme ‘Batman: o cavaleiro das trevas’. Acredito que todos os que assistiram ao filme irão concordar comigo que o grande barato do filme é o personagem Curinga, pois o Batman em si estava muito fraco. Mas esse filme não é o único. Em muitos casos a figura do vilão está se mostrando cada vez mais complexa, elaborada e, também, impactante. Não existem mais espaços para os velhos clichês, com suas risadas sarcásticas e planos malignos. Agora o espaço é dado aos “Lestats” das crônicas vampirescas de Anne Rice, dos “Hannibals” interpretados por Anthony Hopkings e muitos e muitos outros vilões que vêm a se tornar os novos astros. Que, mesmo cometendo as maiores atrocidades, são irresistíveis.
No ‘Evangelho Segundo Jesus Cristo’, de José Saramago, uma passagem me chamou muito a atenção. Ela diz respeito a um momento aonde Jesus dialoga com Deus e com o Diabo, conhecendo, a partir dali, seu futuro e o destino de sua religião, aonde muita morte terá de acontecer com a morte dos apóstolos, as cruzadas e a inquisição. Satanás, nessa passagem, faz uma proposta a Deus, de que, se O Pai o perdoasse de todos os seus pecados, ele desistira de sua revolta e assim a paz poderia chegar ao planeta, pois não mais haveria mal. Deus, no entanto, não aceita, alegando que é necessária a existência do mal para que Ele possa existir. Dessa forma, um mundo sem o Diabo, seria um mundo em paz sim, mas um mundo aonde ninguém reconheceria Deus.
Essa atitude egoísta da divindade proposta por Saramago mostra mais uma característica dessa valorização do anti-herói. Isso por que, um personagem que é a pura representação do mal — o Diabo — aqui aparece como aquele que tenta a paz, tenta a redenção. Como ele mesmo diz: ‘não podem dizer que o diabo nunca tentou’. O Diabo é apresentado aqui como um ser virtuoso, mas não é só ele. Anne Rice trás os vampiros — monstros comedores de gente — e os transforma nos heróis de suas obras. J. K. Rowling pega a velha bruxa má, destruidora de campos e amiga de Satanás e a transforma na protagonista de sua série. Demônios, aquilo que é de pior na mitologia judaico-cristã, ganham a possibilidade de protagonizarem em ‘Demônio: a queda’ e ‘De corpo e Alma’ — Em breve nas livrarias (rsrs — Momento comercial).
Os personagens estão, sem dúvida, mais complexos, mais surpreendentes. Os papeis podem ser trocados e as torcidas podem variar. Mas o que significaria isso?  Estaríamos nós nos tornando uma sociedade de degenerados que cultuam o mal e riem da moralidade e da ética? Ou estaríamos entrando em um novo momento de revelações, onde as injustiças do passado com relação a mitos antigos estão sendo revisados e vingados?
Sinceramente, não sei. Talvez o vilão seja aquele que nos permita entrar em contato com nosso lado mais obscuro, permitindo-nos prazeres pouco convencionais mesmo que de forma ficcional. Ou talvez seja apenas um processo de modernidade na forma de se fazer ficção. Um sintoma de um público cansado dos mesmos heróis com suas mesmas virtudes. Ou pode ser possível ainda que os próprios valores da sociedade, com o tempo, possam estar mudando.
Essa terceira me é mais atraente, pois, se observarmos os valores de antes, percebemos que eles não estão mais presentes hoje. Pensemos — apenas com o intuito de ilustrar — na virgindade feminina até o casamento. Esse é um tabu presente nas sociedades ocidentais desde antes de Cristo, mas que hoje já foi quebrado e superado. As mocinhas virginais dos contos de cavaleiros não atraem mais o leitor como antes e hoje são elas que tomam a atitude ativa e exigem que os heróis as possuam. Como faz a Bella de ‘Crepúsculo’ com relação a Edward. A revolução sexual já aconteceu no mundo e a arte acompanhou essa tendência.
Voltando agora ao anti-herói, também temos aí uma questão atual, pois, muito mais do que uma apologia ao mal, acredito que essa nova onda de vilões, é, na verdade, uma resposta a uma própria falta de conhecimento do que seria o certo. Não que sejamos um bando de degenerados que desgraçam a humanidade, mas sim que somos pessoas que vivemos em um mundo aonde a polícia mata os cidadãos, os políticos nos roubam enquanto os pobres morrem de fome e as pessoas continuam matando em nome de Deus. Vivemos em um mundo, aonde os mocinhos da história não são mais tão virtuosos. Então, não estaria nos vilões a solução?
Mas como eu disse antes, não sei a resposta para essa tendência atual. Pelo menos não precisamente. Estou deixando aqui apenas algumas observações. Vocês teriam alguma outra sugestão de resposta? Adoraria ouvir. Mas uma coisa não se pode negar: os papeis estão se tornando a cada dia mais imprevisíveis.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Refletindo a Sociedade — Problemas, desejos e utopias do homem moderno presentes no mito do Vampiro.

A fantasia, muito além de promover devaneios e fugas de uma realidade, de alguma forma, reflete a problemática do mundo real e a translitera de forma a torná-la maravilhosa. Na temática escolhida pelo autor, podemos perceber alguns de seus sonhos, coisas que, por ele estar criando, na verdade, refletem a desejos dele próprio. E quando o livro vende, podemos ver que esses desejos vão além do autor e se mostram presentes em toda uma sociedade.
Acho que todos irão concordar que a grande personagem mitológica em voga atualmente não pode ser outra que não o bom o velho Vampiro. Um mito arcaico, que nasceu como um morto-vivo irracional comedor de carne humana fresca, passando para um ‘gentleman’ com Bram Stoker e Lord Byron, até chegar ao heroísmo na contemporaneidade com L. J. Smith e Stephenie Meyer — e outros mais que seguem essa linha como as séries ‘House Of Night’ e ‘Irmandade da Adaga Negra’. No Brasil, também temos bons expoentes como André Vianco e a nossa estreante Vivianne Fair, com a trilogia ‘A Caçadora’. Enfim, a lista é enorme.
Mas a pergunta que eu lanço neste ensaio é: Por que o Vampiro? Por que, dentre tantos mitos a serem trabalhados, de tantos personagens folclóricos, é o vampiro quem preenche majoritariamente as prateleiras das livrarias no Brasil e no mundo? A afirmação que eu faço no primeiro parágrafo desse artigo não é inocente. Ela é a chave para o que é, a meu ver, a resposta.
O que é a Fantasia se não um sonho? Uma utopia, que visa atender um desejo? Freud dizia que os sonhos tinham a função de acessar nossos desejos mais íntimos a fim de exibi-los para nós, mesmo que de forma irreal, e, assim, nos satisfazer através do prazer proporcionado. Não quero discutir muito Freud aqui, até por que a parte dos sonhos é bastante complicada, pois também existem os pesadelos... Mas enfim. O que eu quero atentar é que assim como o sonho, a fantasia é criada de modo a atender nossos desejos, nossas necessidades, ela reflete nossos anseios, e os cria de forma mágica para nos proporcionar prazer.
Então, torno a perguntar: Por que o Vampiro? Mas agora, a pergunta se torna mais refinada. O que o vampiro tem que possa, de algum modo, refletir os desejos do homem contemporâneo. Como objeto de estudos, usarei um pouco aqui da série ‘Crepúsculo’, por ser o mais ilustre e também comentado trabalho dos últimos tempos sobre o tema.
Vejamos como ‘Crepúsculo’ apresenta seus vampiros: Homens e mulheres de beleza invejável. De imortalidade comprovada, eles não só não envelhecem como também são muito difíceis de serem mortos. Nem o sol parece ser mais um problema para eles. Eternamente jovens, os vampiros de SM refletem uma característica muito marcante na sociedade moderna: o ‘Presentismo’.
Como ‘Presentismo’ aqui, digo exatamente o que o conceito parece: Um apego ao Presente. Intelectuais como Francois Hartog ou Pierre Nora, nos alertam para um momento de nossa sociedade em que vivemos num mundo onde o passado é considerado ultrapassado. Ele não nos acrescenta mais em nada e por isso temos que estar constantemente superando-o. O desapego a ele é apresentado na maneira como nós mesmos lidamos com nossa memória. Como procuramos esquecê-la. Como as coisas parecem não durar muito em nossas mentes por mais bombásticas ou mais calamitosas que acontecem.
O futuro também se mostra pouco atraente. Aparece para nós de forma incerta. Não temos certeza alguma de aonde as coisas irão dar. Atualmente, muito poucos de nós acreditamos num futuro melhor. Teorias apocalípticas estão por toda a parte: o 2012 do calendário Maia, a espera do Messias vindo pela primeira ou segunda vez, dependendo da teologia adotada — Judaica ou Cristã, respectivamente. E também temos os apocalipses científicos: O buraco na camada de ozônio, o aumento do nível dos mares, o aquecimento global, a nova era do gelo. O que parece ser a única certeza que temos é que o Mundo vai acabar, mas como, não sabemos direito.
E é nesse contexto que o Presentismo se manifesta. Hoje, não se tem mais a idéia de se aprender com o passado, e a partir do momento em que não vemos um futuro, temos única e exclusivamente o presente ao que nos agarramos com toda a força. E os sintomas estão claros para nós.
1. O apego a juventude: O aumento do número de academias, operações plásticas, produtos de beleza. A televisão, os jornais as revistas, a mídia em geral, bombardeando as pessoas com imagens de pessoas jovens e felizes.
2. O medo da morte: Com cada vez mais crescente onda de ateísmo mundial, o medo da morte nunca esteve tão presente, de modo que, ma maioria das vezes, nem sequer procuramos pensar nessa possibilidade. Preferimos esquecer e nos agarramos à ilusão de que viveremos para sempre.
Existem outras características desse presentismo na sociedade — como a irresponsabilidade social ou ambiental — mas não vou falar delas já que meu objeto de estudos é o mito do vampiro.
O vampiro passa hoje a ser uma projeção de nossos desejos. Pois quem de nós não gostaria de viver para sempre, de sermos eternamente atraentes e jovens? O vampiro passa então a ser nossa nova utopia. Apesar de não cremos nele, nos permitirmos, enquanto lemos, nos imaginar no lugar dele, sermos como ele. Sonhamos e através desse sonho, atendemos a demandas nossos anseios. Anseios esses ocultos muitas vezes, mas presentes.
Vocês devem estar se perguntando: Qual a minha proposta ao escrever esse artigo? Criticar a saga ‘Crepúsculo’? Não. Alertá-los de alguma coisa? Também não. Desabafar? Talvez. Ordenar para que parem de escrever sobre Vampiros? Jamais! Eu amo esse mito e adoro ler sobre ele — contanto que seja de forma bem construída.
Então o que? Simplesmente, proponho que pensemos sobre o assunto. Sobre o presentismo e como ele se mostra na nossa vida e na literatura. Até mesmo no ‘Véu’ ele está presente. Acabei percebendo isso depois de escrever o livro. Ele estava lá, de forma inconsciente. Quem ler vai entender o que eu digo.
Então, convido aqueles que vierem a se interessar em ler esse ensaio, a pensarem sobre o tema, refletirem sobre essa condição, pois essa é uma das funções da fantasia. Já bati nessa tecla, estou batendo e baterei até o fim: a fantasia não serve apenas para que escapemos da realidade, mas também para que pensemos sobre ela de forma indireta.

sábado, 1 de maio de 2010

O Salto

Saudações Amigos.
Eu já havia avisado em alguns posts anteriores que atualmente estou trabalhando em um novo romance que trará anjos ao palco como protagonistas.
Esse presente conto é, na verdade, primeiro capítulo do romance "O Salto", que já se encontra em processo de conclusão. O conto já foi publicado na homepage Mais 1 Livro. Para conferir, basta acessar o link Quinta do Conto, no canto direito do site. Para aqueles que possuam contos, ensaios, artigos ou resenhas  e estejam interessados em participar, o moderador, João Paulo Oliveria está fazendo um ótimo trabalho de publicação e está aberto ao recebimento de novos colaboradores. O blog está começando agora, mas já demonstra grandes potenciais de crescimento. É uma boa oportunidade para quem quer ter seu tabalho exibido.
Pois bem, sem mais delongas, apresento-lhes "O Salto"



E ali estava eu, mais uma vez. Novamente me sentindo a criatura mais desprezível do mundo, mais uma vez enganando a mim mesmo. E acima de tudo, mais uma vez querendo aquilo com todo o meu ser.
Era claro para mim que aquilo era errado, que eu deveria estar longe, mas a todo o momento meu corpo era arrastado de volta para lá, para ela. As noites eram minhas horas preferidas, pois ali eu poderia vê-la dormir. O fato de gostar mais dela adormecida não servia ao propósito de me manter oculto, pois mesmo acordada, ela não me veria. Assim como não me via de dia enquanto estava trabalhando, ajudando a avó ou lendo aqueles periódicos complicados de medicina. Ela nunca me via, pois essa é a condição: estarmos sempre perto, mas nunca sermos vistos.
Acho que era exatamente por isso que eu a preferia quando estava dormindo, pois dessa forma, pelo menos eu conseguia aceitar miseravelmente o fato de ela nunca poder me ver. É tão triste estar na sua frente o tempo todo, acompanhar seus passos e vê-la olhar para mim sem me enxergar, vendo através de mim como se eu fosse apenas ar, como se não existisse. Mas também havia outras vantagens que me faziam preferir acompanhá-la enquanto ela estava adormecida. Nesse estado, onde seu espírito saía e vagava pelas mais longínquas regiões, e onde seu corpo ficava calmo, sereno. Onde seu rosto, agora tomado de uma expressão angelical, me fazia sentir, ao mesmo tempo, alegria e nojo de mim mesmo.
Só mais uns minutos, eu pensava, eu só estou fazendo meu trabalho, tentava acreditar, ela é como todas as outras, eu queria loucamente acreditar. A todo o momento eu me enganava, sabia disso, mas como o pior dos mentirosos, fingia não notar e achar que meus argumentos eram válidos, que justificavam minha permanência ali por mais alguns intermináveis minutos.
Por um lado, era verdade que eu estava realizando meu trabalho. Como todo o anjo, minha missão era simples e clara: Protegê-los, sem jamais intervir, Observar, sem jamais ser visto. Então eu estava lá. Cuidando dela, protegendo-a a minha maneira, mas aquilo não era a completa verdade. Pois, além dela, eu tinha a missão de proteger a todos. Eu não era exclusivo.
E foi ali, olhando suas expressões calmas e ouvindo sua respiração pesada, que me permiti voltar no tempo, mais uma vez. Para o dia em que a vi pela primeira vez. Além de proteger as pessoas, eu, como Ceifeiro, tenho também a missão de guiá-los na triste data da morte, ao encontro de meu Pai. E foi esse trabalho, considerado desagradável por muitos — eu ainda não me decidi quanto a isso —, que eu a conheci.
Em torno do leito da velha senhora Magno, num quarto pequeno e aconchegante, estavam toda a sua família e também alguns poucos amigos. Os familiares estavam em número reduzido, pois um Ceifeiro já havia visitado aquela família não fazia muito tempo. Sua filha Telma e seu genro Ivan já haviam sido levados antes. Abigail, uma amiga de trabalho tinha tomado conta disso, deixando apenas uma menina de cabelos castanhos que estava naquele momento ajoelhada diante da cama, e foi a única sobrevivente do trágico acidente. O marido de Camila, Felipe, também estava ali, pousando sua mão no ombro da neta. E com eles dois, Régis e Érica, também avós da pequena criança e pais de Ivan. Todos permaneceram calados, apreensivos, esperando apenas o médico que media o pulso da velha senhora dar seu diagnóstico.
Quando finalmente parou de examinar sua paciente, ele retirou os óculos do rosto e deu a triste notícia com a calma e distância que sua profissão exigia:
— Eu sinto muito — disse para os parentes, que se colocaram a chorar. As mulheres, mais livremente. Os homens, se segurando um pouco.
Mas de todos que ali estavam aquela que mais me chamava atenção era uma menininha de cabelos castanhos e faces rosadas. De todas, ela era a única que mantinha um brilho diferente no olhar. Enquanto os demais fitavam o corpo da velha senhora com pena ou tristeza, ela o encarava com esperança.  Com o foco fixo no corpo da avó, parecia que ela tentava de alguma forma atraí-la de volta, como se com o poder de seu olhar pudesse fazer com que a morta se erguesse da cama novamente. Uma fé realmente bonita, mas desnecessária. Já era tarde, e a alma de Camila já se encontrava ao meu lado naquele momento.
— Eu morri? — ela perguntou para mim assim que notou a condição a sua volta, onde eu era o único que conseguia vê-la ali.
— Sim — respondi com o mesmo tom distante que o médico usara para anunciar a morte de Camila para os presentes. Por que será que todos aqueles que trabalham com mortos tem que assumir essa distância?
— Meu Deus! — ela levou as mãos à boca — Pobre Clara. — e olhava para o rosto da pobre criança que ainda fixava sua atenção para o corpo de sua avó, esperando que ela se erguesse depois de um sono relaxante.
— Eu preciso acompanhar a senhora — informei colocando a mão em seu ombro e tirando-a dos devaneios.
Ela ainda precisou ficar um tempo para poder reagir ao meu toque.
— Eu... — ela me olhou um tanto hesitante, mas logo consentiu — Claro.
E sem dizer mais nada, fomos embora. Era bom quando as pessoas escolhiam ir de tão bom grado. Algumas vezes, eu precisava gastar horas para convencê-las de que o melhor era seguir comigo, que era a lei imutável e que o Pai às esperava do outro lado. Porém, sempre havia aquelas cujo medo ou vontade de viver, eu não conseguia vencer, sendo obrigado então a deixá-las para trás e permitir que suas próprias experiências as conduzissem para o caminho certo. Era triste ter de fazer isso, mas a regra ainda era clara: não intervir.
Assim, chegando ao ponto final, depois de sobrevoarmos toda a pequena cidade de São Donato, onde o céu crepuscular tingia as nuvens de laranja, chegou a hora de nos despedirmos. Ali, de pé sobre o teto de telhas de cerâmica da Igreja, que ficava logo acima do morro na entrada da cidade, eu me virei para Camila.
— É aqui que eu a deixo. — informei — A partir de agora, seu caminho ficará sob responsabilidade do Pai.
Ela hesitou mais uma vez, olhando para a direção de onde viemos.
— O que a aflige? — tentei ser solícito.
— Nada.
Mas eu não acreditei, e esperei pacientemente que ela fosse capaz de abrir o coração.
— Clara... — disse o nome quase que mecanicamente.
— O que tem ela? — perguntei, me lembrando que esse era o nome da garotinha que estava ao seu lado no leito de morte.
— Eu fico preocupada com ela — admitiu — Ela perdeu os pais tão recentemente e ainda tem dificuldades em interagir com as pessoas daqui. Eu sou, basicamente, sua única amiga. Ou era...
— Compreendo.
Seus olhos marejados começaram a fitar a cidade logo abaixo de nós. Aquela era uma vista muito bonita, capaz de prender a atenção até mesmo de uma criatura como eu, que já havia visto tantas coisas. Depois de admirá-la por algum tempo, seu rosto se voltou novamente para mim. Seus olhos queriam transmitir alguma coisa que eu demorei a compreender. Mas então, analisando melhor suas expressões, previ que dali viria um pedido.
— Por favor, — suspirou — Cuide dela para mim.
— Não se preocupe. — tranqüilizei-a — Eu sempre cuido. — e lancei-lhe um sorriso carinhoso.
— Não — ela argumentou, balançando a cabeça — Eu preciso que você cuide dela de verdade.
Apesar de me sentir um tanto ofendido, continuei a sorri com carinho.
— Eu cuidarei. — garanti
— Prometa-me que não a deixará sofrer nenhum mal.
— Eu prometo. — ri de forma suave. Já estava acostumado àqueles tipos de pedidos.
— Por Deus.
— Pelo Pai — respondi e ela sorriu aliviada.
— Tenha uma boa viagem — desejei.
— Obrigada — e levando as mãos ao peito num gesto de gratidão, desapareceu. Como acontecia com todas as outras, uma luz vinda do interior de seu próprio espírito a consumiu, fazendo-a desaparecer, e eu não era mais capaz de captar sua presença. E também, como acontece todas as vezes que me despeço de alguém, eu tinha aquela sensação de estar sujo por dentro. Enfim, ignorando-a mais uma vez, eu segui meu caminho.
Naquela mesma noite, voltei à casa de Clara. Já era noite e quando entrei pela janela encontrei a menina ajoelhada ao lado da cama, realizando uma prece silenciosa. Enquanto a esperava terminar e ir se deitar, eu passei a olhar pelo pequeno aposento. Seu quarto era decorado quase que totalmente de cor lilás. Sua cama, aonde ela se apoiava os cotovelos para orar, se encontrava bem arrumada e na cômoda ao lado estava uma foto da mulher que eu acabei de guiar.
— Papai. — foi a primeira vez que escutei a sua voz, ouvindo-a falar olhando para o teto — Por que você levou a minha avó?
Uma pergunta inocente, mas ainda assim, com uma pontada de ressentimento.
— Primeiro papai e mamãe, agora ela... — e fungou alto, segurando o choro — Por que você tem que me tirar todos os que amo? Por que seus anjos tiveram de levá-la?
Ela não foi mais capaz de segurar o choro e as lágrimas brilhantes começaram a descer de seu rosto. Como aquilo me doía. Não era a primeira vez que eu escutava esse tipo de desabafo e provavelmente não seria a última, mas não podia deixar de me sentir agredido por aquelas palavras.
— Eu... Eu estou de mal com o Senhor. Estou de mal com seus anjos — ameaçou com uma coragem que só era possível para quem aos poucos deixava de acreditar que era ouvida — Não quero mais saber deles — e soluçou — Por que vocês não fizeram nada para impedir...?
Eu queria tampar os ouvidos, queria poder fazer algo para que ela se calasse, mas não consegui. Eu poderia ir embora, mas resolvi ficar. Talvez por que eu ainda estivesse me sentindo em dívida com Camila e achava-me na obrigatoriedade de ficar ali pelo menos até ela adormecer, ou talvez por que, lá no fundo, numa parte bastante obscura e doentia de mim mesmo, eu acreditava que merecia ouvir aquelas palavras. Não sei a razão, mas fiquei. E foi então que ela finalmente cansou-se de orar e resolveu se deitar. Sem saber, eu havia testemunhado a última noite em que a ouviria falar comigo ou com qualquer um de minha espécie.
Clara se deitou e se cobriu. Agarrou um travesseiro com o qual enxugou as lágrimas de seu rosto e com ele dormiu abraçada. Fungou muito antes de finalmente adormecer, mas enfim, conseguiu. Ela era uma criança. Tinha a vida toda pela frente e logo superaria isso. Era hora de eu ir embora. Mas não o fiz e aquela seria a primeira de muitas vezes que continuei ali, sem dizer, fazer ou pensar em nada, absorto em vê-la dormir. Naquela época eu nem fazia idéia da terrível armadilha na qual eu estava entrando de livre e espontânea vontade. O que havia de tão fascinante nela? Por que eu sentia como se não quisesse fazer mais nada além de estar ali? Eu não consegui responder essa pergunta naquela noite e jamais consegui responder até hoje. Sorri involuntariamente ao vê-la se mexer. Já chega Gabriel. É hora de partir. Disse para mim mesmo e com isso consegui reunir a força necessária para me erguer novamente e me dirigir até a janela. Eu não deveria precisar de tanta força de vontade assim para simplesmente sair, mas precisei.
Andei até a abertura como se minhas pernas estivessem presas por bolas de chumbo e quando cheguei bem próximo de sair, escutei algo que me fez voltar. Um gemido, muito próximo ao choro, me chamou de volta a atenção para ela. Foi quando a vi, contorcendo-se em seu leito, agarrando com força as cobertas e se remexendo. Seus olhos crispados completavam o retrato da dor que sentia e mais uma vez aquilo me incomodou. Olhei para os lados esperando que alguém pudesse vir e tirá-la daquele pesadelo terrível, mas parecia que ninguém na casa escutava seu pranto contido. Eu a olhava, desejando loucamente que ela parasse. Não agüentava mais ouvir aquilo. Não de novo, não dessa forma. Por algum motivo ele era forte demais para mim, me destruía por dentro. E foi quando cometi o primeiro de muitos erros que se seguiriam depois. Sem pensar em nada, coloquei minha mão carinhosamente sobre sua testa úmida.
Não precisou de muito tempo para que ela parasse. Um sorriso lindo cortou seus lábios e ela relaxou. Mas aquele gesto me deixou uma marca. Pois naquele instante eu senti um calor agradável na mão. Aquele toque havia despertado em mim uma sensação, até então, nunca antes experimentada: uma centelha do que seria o calor humano.
Como se aquele toque pudesse produzir chamas que me consumiria, eu retirei a mão rapidamente e olhei assustado em volta. Ninguém. Temendo a mim mesmo depois dali, voei pela janela e desapareci, prometendo não voltar.

Mas eu voltei. No dia seguinte e no outro. Voltei durante quinze anos. Assim como voltara agora. Durante o processo, eu a vi crescer. Vi quando foi à escola pela primeira vez e quando as meninas de sua turma foram más com ela. Vi quando teve seu primeiro namorado e sua primeira vez. Vi quando entrou para a faculdade e quando se formou. Eu também estava lá quando perdeu seus outros parentes: seu avô materno e paterno, ambos vítimas de ataque cardíaco. E nesse instante eu percebi que algo havia mudado nela, pois Clara não chorou por nenhuma dessas perdas. Assim como não chorou quando aquele seu primeiro namorado a traiu com uma de suas amigas. Ela não chorou mais. Nem quando se machucava na rua, nem quando brigava com os amigos ou não conseguia aquilo que mais desejava. Nenhuma vez lágrimas saíram de seus olhos.
E a todo o momento eu estava lá ao seu lado, sem que ela nunca suspeitasse. Sempre presente, desde suas visitas à cachoeira de São Donato aonde gostava de ver o véu d’água, até as visitas ao cemitério aonde levava flores para o túmulo de seus entes queridos. Nunca notado... Assim como acontecia agora...
Ela estava dormindo e eu vigiando seu sono. Vigiando, guardando e também... Esperando. Esperando o que sempre acontecia para que pudesse agir. E não foi diferente aquela noite. Nesse instante, mais um gemido se fez ouvir e seu rosto doce se contorceu de dor. Mais um pesadelo. Ela parecia ser uma espécie de chamariz para eles e mais uma vez algo de ruim se passava pela sua cabeça, atrapalhando-lhe o sono. Hoje, ela não era mais uma garotinha, era uma mulher. Mas sua dor ainda era capaz de me destruir como antes e eu acabei cometendo o mesmo erro de anos atrás. O mesmo erro que cometi durante esses quinze anos em que a acompanhei e a confortei, permitindo aquele toque perigoso que me enchia de culpa e nojo, mas também, me dava um alívio digno de um viciado. Hoje eu já não podia dizer se fazia isso por ela ou por mim.
E funcionou. Ela se acalmou.
— Gabriel — escutei no mesmo instante a voz atrás de mim me chamar e logo me virei como uma criança que é pega diante de uma travessura.
— Eu... — quis explicar, mas não tinha o que dizer. Ela havia visto tudo. Sem ter o que argumentar, limitei-me a olhar para o chão escondendo minhas feições culpadas. Quando finalmente obtive coragem, ergui o rosto e meus olhos se encontraram com os dela. Apesar de minha atitude desprezível, Abigail não parecia irritada. Seus olhos cor de avelã, pelo contrário, me olhavam com pena e compaixão.
Uma mulher de aparência jovem, morena e de longos cabelos cacheados e pretos, estava ali. Aquela aparência juvenil que escondia sua real idade milenar igual a mim. Como eu, ela era um Ceifeiro, ela era um anjo. Atrás dela, asas negras saiam-lhe das costas. Estas também, iguais as minhas.
— Gabriel. — disse com a voz doce, como uma mãe que vê com tristeza o filho ir para a guerra ou fazer qualquer tipo de coisa perigosa. — Você sabe como é perigoso o caminho pelo qual está indo.
É. Eu sabia. E o fato de Abigail ser tão doce comigo, assim como fora tão doce vendo meus erros durante esses quinze anos, me enchia de culpa. Pois eu queria fazer por merecer todo o amor e dedicação que ela me dava.
— Perdão Abigail... — foi tudo o que consegui dizer e sem esperar mais nada, ela veio e me abraçou, deixando meu rosto ser encoberto por seus longos cachos. Apesar de intenso, aquele toque não tinha o calor de Clara, que tanto me viciara. Isso por que Abigail não era humana. Mas aquilo era confortante, e isso já valia.
—Perdão — repeti e ela me calou.
— Vamos — disse simplesmente — Você também deve ter ouvido o Chamado.
É. Eu ouvira. Era hora do trabalho. Então, juntos voamos pelas janelas e desaparecemos na escuridão da noite.