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sábado, 6 de março de 2010

O Véu - Volume Dois - Prólogo: Heroi?

Para aqueles que quiserem ir dando uma espiada na próxima aventura. (Download disponível - link ao lado)


Todo o carioca, seja ele amante de sua cidade ou não, sabe que as ruas do Rio de Janeiro não são boas para se andar sozinho durante as madrugadas de Junho. Além do frio, que naturalmente já espanta os transeuntes, a segurança – ou melhor, a falta dela – é outro fator que tornam aos passeios noturnos menos convidativos.
Assim, muitos preferem a monotonia de seus lares e a comodidade de seus aparelhos de TV, a arriscarem sair pelas madrugadas desertas, ainda mais se você é como a pessoa que começa a surgir no horizonte. Vindo ao longe, pelas ruas artificialmente iluminadas e frias da Avenida Nossa Senhora de Copacabana, caminhava uma jovem. Qualquer um que a visse se perguntaria o que uma menina de aparência tão frágil estaria fazendo por ali às duas da manhã.
Ela devia ter uns vinte e dois anos, no máximo, e seu corpo era bem desenvolvido, característica essa que era realçada pela blusa curta e calça justa que usava. A única coisa que protegida sua pele do frio da madrugada era um fino casaco que a cobria até a altura dos joelhos. Ela mantinha a gola dele levantada, na tentativa de proteger o rosto dos ventos cortantes e quem sabe, encobrir um pouco seus olhos castanhos que olhavam com temor por todas as esquinas, como se estivesse à espera de algum perigo iminente. Ao julgar pela coloração vermelha do globo ocular e pelo inchaço nas pálpebras, ela devia ter acabado de chorar e o medo que deixava vazar denunciava que não devia saber muito bem o que fazia ali.
Ela era Amanda. Uma garota de classe alta de Copacabana, moradora do condomínio Ares Novos, situado na Rua Bolívar. Estava muito próxima de casa naquele momento, mas ainda assim se amaldiçoava por ter se arriscado a vir por cerca de dezoito quadras até ali sozinha. Estava irritada com isso e em sua cabeça considerava apenas uma pessoa como responsável por seu infortúnio: Pedro.
Por que ele insistia em lhe irritar? Por que não conseguia se acostumar com ela da forma como era? Pedro era seu namorado há uns três meses. Amanda gostava dele, mas seus mundos eram diferentes. Pedro gostava da ordem, do estudo e de uma vida calma. Já Amanda, sempre foi fã das festas, da noite e da diversão. Até hoje ela não saberia dizer exatamente o que tinha visto no rapaz para começar a namorá-lo. Talvez houvesse se enganado, mas era difícil de acreditar, pois ninguém levava um engano por tanto tempo.
A verdade era que gostava muito dele, mas não podia suportar suas críticas. Desde que começou a namorar, sua vida social sofreu graves perdas por deixar de ir às festas, shows e outros eventos que faziam parte de seu mundo como o ar ou a comida. Ela reconhecia que Pedro se esforçava para levá-la a alguns lugares, mas as saídas que o namorado lhe proporcionava não eram nada comparadas a sua vida agitada de solteira.
O rapaz tinha vinte e cinco anos e estava concluindo o mestrado de Ciências Políticas. Amanda o conhecia desde os doze anos e sabia que ele era do estilo responsável. Desde pequeno era visto como NERD e foi com essa dedicação que Pedro foi capaz de conseguir uma bolsa integral na faculdade mais cara do Rio de Janeiro, sendo que ele nem precisava disso, já que seus pais poderiam arcar com os custos da universidade sem muitos esforços.
E desde que entrou para a vida universitária, a responsabilidade e maturidade dele sofreram visíveis acentuações, contrastando ainda mais com Amanda, que vivia no extremo oposto. A garota ainda não sabia bem o que fazer da vida e ainda estava no que gostava de chamar de “Estágio de Conhecimento Próprio”, que não tinha prazo definido. Pedro sempre criticava esse seu lado despreocupado, o que a irritava completamente e quanto mais ela ia refletindo sobre o namorado, mais se perguntava por que havia começado o relacionamento para começo de conversa.
Ela não saberia explicar, mas há uns três meses um estranho interesse começou a surgir entre eles. Talvez o ar maduro, ou a idade tenham dado uma beleza a Pedro que não possuía na época de adolescente magrelo. Mas o fato é que Amanda começou a se sentir atraída por ele. Ela se lembra que quando iniciaram a relação, saíam juntos quase todo o fim de semana. Ela conseguia arrastá-lo para todos os lugares e assim pôde ver que o amigo era mais divertido do que supunha. Então, numa dessas noites, ele a pediu em namoro.
Talvez fosse a bebida, mas Amanda não pensou muito antes de aceitar e o começo da relação ainda foi bom. A primeira semana foi de muita diversão e saídas, mas quando essa vida boêmia começou a prejudicar o rendimento de Pedro no mestrado, suas saídas sofreram uma grave paralisação, que, no início, ela até aceitou bem. Sentia que amava o namorado e o que era um tempinho longe da diversão se conseguia se sentir bem ao seu lado? Mas então, a vida monótona começou a irritá-la e o tédio passou a ser um companheiro recorrente de seu dia.
Pedro sempre dizia que ela devia tentar a faculdade naquele período, descobrir alguma vocação, tentar um curso talvez e nesses momentos, Amanda sempre o cortava. Não gostava de ser repreendida. Se seu pai não se importava com seu Estágio de Conhecimento Próprio, quem era ele para se meter? Então, as coisas começaram a esfriar entre os dois e foi piorando à medida que o estresse dela aumentava e as cobranças dele cresciam.
E vendo isso, naquela noite, Pedro decidiu levá-la para uma boate próxima, a fim de fazerem as pazes. Mesmo chateada, aceitou o convite. Seria uma boa hora para tentarem se acertar. Não gostava de brigar com ele. Apesar de tudo, o amava.
Mas então aconteceu: quando Amanda foi dançar no meio da pista – coisa que sempre fazia – sentiu seu braço sendo puxado por uma mão forte fazendo seu corpo ser arrastado para um canto do estabelecimento. Quando conseguiu ver quem era, percebeu seu namorado que parecia um tanto irritado
- O que houve? – disse tentando libertar o membro preso
Mas ele não respondeu.
- Me solta! - ordenou fazendo força agora, mas ainda assim não conseguiu – Está me machucando!
Ela sentiu com alívio a mão dele se afrouxando e Pedro se virou para encará-la.
- O que deu em você? – Amanda gritou por causa do barulho das caixas de som.
- O que deu em você? - rebateu – Dançando daquele jeito no meio da pista. O que você estava pensando?
- Eu sempre faço isso! – lembrou entre dentes começando a sentir raiva. Não acreditava que agora Pedro quisesse controlar seus passos de dança também.
- Pois já devia parar! Não vê quanta atenção chama assim? Não viu quantos caras estavam olhando pra você?
- Eu não me importo! – replicou.
- Mas eu sim! – Pedro argumentou – Não quero que fiquem te vendo dançar como uma...
Mas se calou no meio da exaltação, deixando a frase solta. Dava para ver que se arrependera de ter ido tão longe e seus olhos se reviraram torcendo para que ela não tivesse percebido o que ele pretendia falar. Mas Amanda percebeu.
- Como o que? - questionou com a voz cortante, mas ele ficou em silêncio.
- Como o que? - insistiu – Como uma vagabunda? Era isso o que queria dizer?
Amanda sentia que sua voz poderia até mesmo superar o volume da música do estabelecimento devido a sua raiva, mas não se preocupou em falar baixo
- Olha aqui Pedro! – gritou – Eu não me importo com o que ninguém nessa droga de boate possa pensar! Só não achava que você também pensasse isso.
Ele ficou calado olhando para o chão. Dava para ver que ainda estava com raiva, mas o constrangimento era maior.
- Descul... – tentou dizer, mas não teve tempo de completar o pedido, pois uma tapa na cara dado por Amanda o fez se silenciar.
E sem dizer nada, ela se virou e saiu de perto dele. Amanda pensou em voltar para a festa, tentar dançar novamente, beber algo talvez, mas sua noite já estava arruinada. Queria voltar pra casa e pensou em pegar um taxi, mas precisava de um tempo só, para poder refletir.
Então, olhou à rua de frente para o mar e estava deserta. Sua casa ficava à apenas alguns quarteirões de distância, logo, o caminho não deveria oferecer muito risco.

Idiota, idiota. Pensou com raiva de si mesma enquanto tentava apressar o passo, mas seu salto alto ameaçava machucá-la ao fazer isso. Como esse caminho não oferecia risco? Ela percorria a rua deserta com os olhos e desejando não encontrar ninguém. Nessas circunstâncias, era melhor estar só do que em companhia de um ou dois estranhos.
Mas agora faltava pouco e Amanda logo estaria em casa. Lá, poderia respirar melhor. E foi quando escutou o som de motor de carro vindo detrás de si. Era o único som no meio do silêncio do lugar e, apesar da raiva que sentia do namorado, por um segundo, torceu para se virar e ver o Volvo branco de Pedro a perseguindo. Assim, virando o rosto com cautela, ela sentiu suas esperanças se esvaírem quando percebeu o Chevrolet azul surgir na Avenida Nossa Senhora de Copacabana.
Sem coragem de ficar olhando para o carro por muito tempo, ela tratou de se voltar para seu caminho e fingir que não viu o veículo enquanto apressava mais o passo, ignorando as fisgadas que seu calçado lhe dava. Conforme andava, torcia com toda a força para que o motorista não parasse e seguisse seu caminho em paz.
Mas não foi assim. Pelo canto do olho, percebeu o veículo se emparelhando com ela e seu peito se apertou. Então, decidiu se virar e olhar. Os vidros estavam fechados e eram escuros, não dava para ver quem era. E nesse instante, num gesto rápido que fez a garota dar um pulo, o carro azul se colocou na sua frente e as portas se abriram num único som.
Um homem jovem, bonito até, e bem vestido saiu. Não tinha a cara de um assaltante, mas mesmo assim o coração de Amanda não a deixou em paz. O rapaz sorria pra ela, um gesto que não a acalmava, mas que a deixava mais apreensiva, pois ele não parecia ter muita prática nisso.  E foi quando outros três homens saíram de dentro do carro e seguiram o motorista na direção de Amanda.
A garota teve a intenção de correr. Não gostava ver que tantos vinham até ela de uma vez. Amanda olhava para os olhos deles e também não gostava do que via. Cada parte de seu corpo gritava para que ela saísse dali, mas os pés não obedeciam mais. Assim que conseguiu mandar uma mensagem para as pernas, fazendo-as se moverem, seu salto alto quase a derrubou no chão. O medo tornava suas pernas um tanto instáveis.
- Oi gatinha – falou o motorista e, aparentemente, líder do grupo.
Amanda não respondeu. Deu um passo pra trás, mas ele fez um sinal para que parasse.
- Calma. Calma. – disse sorrindo – Não vamos te fazer mal.
Mas Amanda não confiava naquele sorriso e logo percebeu que os demais a estavam cercando. Ela queria gritar, mas não conseguia se lembrar como fazia para o ar dos pulmões se transformarem em som.
- Calma gatinha – disse o líder, agora muito próximo, alisando seu rosto e arrancando risadinhas dos demais companheiros – Só queremos dar uma checada no material.
O que? Seus olhos se arregalaram.
Agora entendia o que acontecia. Provavelmente estava sendo confundida com uma prostituta do calçadão. Ela queria corrigir o engano acreditando que assim eles iriam embora, mas quando a mão do homem foi para dentro de seu casado, Amanda só pensou em empurrá-la socando-a com violência. Vendo que tinha ido um pouco longe, tentou correr para trás, mas esbarrou num dos garotos que a empurrou de volta. O motorista a segurou pelos cabelos arrancando-lhe um grito de dor.
- Olha aqui vadia – rosnou – Não vem com essa agora de bancar a virgem com a gente. Vamos logo, mostra o material.
E ele tenteou passar novamente a mão por dentro do casaco de Amanda, que lutava para empurrá-lo. E foi quando ele se irritou e lhe deu uma bofetada. Amanda sentiu o rosto arder e já não conseguiu mais segurar o casaco que lhe foi tirado, expondo seu corpo ao frio. Logo, o motorista a empurrou contra o chão e a garota sentiu a dor dos quadris batendo no meio fio e seu corpo rolar para a rua.
Antes que conseguisse se levantar, viu que estava cercada de novo. Os olhares que lhe lançavam faziam-na tremer de medo, pois conseguia ver o prazer que aqueles garotos estavam sentindo com seu sofrimento, e sabia bem que a coisa não ia parar por ali. Começou a chorar involuntariamente. Um choro abafado pelo pavor que sentia.
- Vamos ensinar uma liçãozinha a ela gente – riu-se o motorista erguendo o pé contra Amanda.
O único gesto instintivo que a garota foi capaz de fazer foi o de proteger o rosto enquanto esperava o impacto.
- Ah! - gritou, mas percebeu que sua reação saiu adiantada, pois não veio acompanhada de nenhuma dor.
Amanda abriu os olhos e viu que seu corpo não fora molestado. E olhando para frente, percebeu que o agressor parecia tão surpreso quanto ela.

Jean sentiu que alguma coisa segurava seu pé e logo sentiu raiva. Sabia bem que não deveria ter trazido Daniel com eles. O cara era muito covarde e ia acabar dando para trás logo naquele momento. Porém, quando olhou para a sua frente, viu que Daniel estava lá. Ele olhou para o amigo com uma interrogação nos olhos e quando passou o olhar pelos demais, constatou que todos estavam à sua frente.
Então, quem estaria lhe segurando a perna?
E quando baixou os olhos, precisou de alguns segundos para entender o que acontecia. Havia uma espécie de mão segurando seu membro. Mas não uma mão comum, esta era negra como a noite e tinha um aspecto estranho, com seu braço parecendo longo e fino demais e seus dedos em forma de garra. A sua cor não se assemelhava a de nenhum tom de pele que Jean conhecia, fazendo perecer que aquela mão estranha era feita de remendos de escuridão e não propriamente de tecido vivo.
Ele acompanhou com os olhos intrigados a fim de encontrar a origem da mão misteriosa e se assustou ao constatar que era sua própria sombra quem o agarrava.
- Mas que merda é... - Não teve tempo de terminar a frase, pois logo uma força sobre-humana lhe ergueu do chão, fazendo-o ficar de ponta cabeça.

Amanda não conseguia explicar o que lhe acontecia diante de seus olhos. Num segundo, o homem à sua frente lhe levantava o pé para atingi-la em cheio e no outro, ele era erguido pelo que parecia uma longa serpente negra que oscilava no ar e parecia surgir do chão. A cobra misteriosa demonstrava encontrar muita facilidade em erguer um homem de uns oitenta quilos numa altura acima da cabeça de Amanda, e mais facilidade ainda em arremessá-lo à cerca de uns trinta metros em direção ao outro lado da rua.
Ouve-se o grito do motorista enquanto ele voa contra a calçada oposta e então se escuta o som dos ossos dando de encontro ao concreto. Não demorou muito para que seus companheiros se exaltassem e começassem a correr em direção ao carro sem nem querer olhar para trás.
Então, mais uma coisa incrível aconteceu.
A serpente gigante se ergue do chão, oscilando sob a luz dos postes e se divide em três grandes tentáculos, que num bale macabro, avançam em direção aos outros três agressores. Amanda via o garoto que impediu sua fuga ser amarrado pelos pés e cair de cara no chão. Logo depois, ele recebe o mesmo destino do companheiro e é arremessado pelas pernas contra o outro lado da rua. Os outros dois tiveram uma sorte um pouco melhor. Foram presos também, mas seus corpos não foram arremessados, sendo apenas golpeados contra o chão. Um deles cai ao lado de Amanda, gemendo de dor.
Tão rápido quanto começou, terminou-se a cena de devastação e um silêncio opressor preenche o lugar. Agora Amanda vê os tentáculos negros voltarem em sua direção e ela se encolhe, acreditando ser a próxima vítima, mas eles não parecem mais tão ameaçadores agora. Eles vêm delicadamente e pegam uma das suas sandálias que saiu do seu pé no momento em que caiu na rua e a entrega à Amanda.
Meio atônita, ela segura o calçado devolvido com as mãos trêmulas, ainda sem acreditar no que está acontecendo. E é então que, através de seu campo de visão, consegue ver um novo personagem que surge. Ao virar o rosto, ela vê um homem de estatura e porte médio, que estava a uns vinte metros de distância e vinha andando calmamente em sua direção. Não havia percebido ele ali antes. Estava tão próximo que Amanda se perguntou há quanto tempo estaria ali.
Era jovem, de aparência próxima a uns vinte e cinco anos, talvez e ele vestia-se completamente de negro, com calças, blusa e sobretudo aberto no mesmo tom. Era esguio e de feições suaves e caminhava impecavelmente em sua direção. À mão direita, ele segurava um fino cordão que estendia uma espécie de pêndulo prateado enquanto a esquerda parecia dar base a ele, como que para ampará-lo caso viesse a cair. Amanda forçou o olhar para ver melhor o estranho objeto e percebeu que parecia uma espécie de medalhão com um pentagrama como pingente, que oscilava, girando hipnoticamente sobre sua mão.
O medalhão brilhava e quando finalmente percebeu, as sombras a sua volta desapareceram. Agora, Amanda conseguia ver melhor seu salvador. Os olhos que se mantinham fechados enquanto parecia se concentrar se abriram, revelando dois belos globos cor de avelã. O homem tinha traços bem definidos no rosto fino e agora olhava pra ela com um sorriso nos lábios. Era um sorriso diferente do que ela recebeu dos outros garotos. Aquele parecia verdadeiramente feliz em vê-la bem.
Ele foi se aproximando e Amanda se manteve sentada. Não parecia capaz de controlar as pernas e se levantar. Ela começou então a notar seus cabelos encaracolados e bem cuidados que caiam graciosamente sobre a testa. Seu salvador parecia um pouco mais branco que o normal, mas isso só lhe acentuava o certo ar de mistério que todo o momento já lhe concedia.
Ele, agora, estava a uma distância de um metro dela e se abaixou olhando bem dentro de seus olhos. Sem dizer nada, o homem passa a mão com o medalhão em seu rosto e ela o deixa cair em cima dela, surpreendendo-se ao constatar que sua pele era tão quente.
Amanda olhava seu herói sem saber o que dizer. Sentia que um simples obrigado não era ao bastante. Era tudo tão fantástico que achava difícil de acreditar mesmo que estivesse acontecendo na sua frente. Então, ficou ali, parada, olhando para ele. Alguém que chegara para lhe salvar a vida.
A garota sentia-se hipnotizada pela presença dele e não foi capaz de tirar o foco de seus olhos avelã. Ele sorriu de novo, revelando dentes impecáveis.  Amanda queria que ele dissesse algo. Talvez se ele falasse, isso despertasse a memória dela e assim fosse capaz de se lembrar como se faz para pronunciar palavras.
Mas ele não disse nada. Apenas foi inclinando o corpo aproximando seu rosto do dela. Ele foi fechando os olhos, fazendo o avelã sumir da vista de Amanda. Instintivamente, ela também fechou os seus. Não sabia por que ele estava fazendo isso, na verdade não sabia por que ela estava fazendo isso. Mas parecia uma forma tão perfeita de se acabar a cena. O beijo final, dado entre a mocinha e seu herói. Assim como ocorrem nos mais belos contos de fada.
O toque foi quente, mas suave. Ela sentiu o corpo vacilar e a cabeça pender quando sua mão quente soltou seu rosto. Os lábios ainda ficaram selados por um tempo, até que, mais rápido do que ela pudesse imaginar possível, parou de senti-los.
Quando abriu os olhos, estava só. Ainda olhou nervosamente para os lados, mas isso só serviu para constatar que o seu herói havia desaparecido. Como?  Ela olhava para o alto, como se ele pudesse ter saído voando da cena, mas nada.
Teria imaginado tudo aquilo? Estaria louca? E foi quando um gemido ao seu lado parecia querer lhe dizer que não. Um dos agressores ainda se mantinha ao seu lado, reclamando de dor com a cara enfiada no asfalto. E olhando em volta, ainda via os quatro corpos no chão.  Há não ser pelo garoto ao seu lado, todos os demais pareciam mortos. Amanda ainda precisou de alguns segundos para ver que era hora de se levantar.
Passado o susto, se deu conta de que estava com frio. Olhou em volta e viu seu casaco ao lado. Não se lembrava dele ali, mas essa era a menor das coisas que intrigavam a garota naquele momento. Então, vestiu o casaco, calçou o tamanco e se levantou. Tinha certeza de que só tinha uma coisa a fazer naquele momento: voltar para casa.
Virou-se para sair e foi quando escutou novamente o gemido ao seu lado. Ela viu um dos garotos estendendo a mão em sua direção. Seus olhos estavam cheios de uma súplica de cortar o coração e Amanda percebeu que tinha algo pra fazer antes de ir para casa.
Sem pensar duas vezes e achando que iria se odiar por isso depois, ergueu a perna acertando um chute bem na boca do estomago do seu frustrado agressor. Não era coisa mais nobre a se fazer, mas se sentiu bem com isso. Logo, ele desmaiou e o silêncio voltou a reinar na rua, cortado apenas pelo som distante de uma sirene. Amanda olhou mais uma vez em volta, na vã tentativa de ver o homem de roupa negra mais uma vez, mas nada.
Então, sem mais delongas, se virou e seguiu seu caminho de volta para casa.

*
Do alto de um dos edifícios da Avenida Nossa Senhora de Copacabana, que faz esquina com a Rua Siqueira Campos, Gabriel conseguia ver a garota que agora andava apressada, possivelmente, de volta para casa. Era melhor assim.
Ele continuou fitando-a até que desaparecesse de vista, admirando aquele corpo salvo. Era realmente muito bonita, havia escolhido bem. E em pensar que tinha quase testemunhado a flagelação daquele corpo perfeito. Isso enchia o jovem de raiva. Por sorte, chegara a tempo de salvá-la.
Amanda saíra de vista e agora ele olhava para os corpos dos quatros garotos e percebeu que havia exagerado um pouco. Aqueles eram filhos de membros da elite local e com certeza suas mortes seriam investigadas. Mas não adiantava chorar pelo leite derramado naquele momento. No fundo, não sentia arrependimento nenhum. Estava fazendo aquilo por amor e isso justificava tudo. Talvez, seu único arrependimento tenha sido o de não torturá-los mais antes de dar o tão sonhado fim, pois a raiva que sentia por terem tentado ferir o corpo de Amanda ainda era grande, mas era hora de parar de pensar e ir embora.
Sua parte estava completa e Gabriel só esperava que os demais estivessem cumprindo seus papéis de forma correta. E agora, ele precisava esperar novas instruções. E assim, inclinando o corpo num ângulo de cento e oitenta graus, Gabriel deixou-se cair do edifício em que estava e foi descendo os dez andares em queda livre, como se não tivesse peso, até tocar suavemente no chão.
Chegando à calçada, seguiu seu caminho.


4 comentários:

  1. Olá !
    Gostei demais do jeito que vc escreve.
    Tô te seguindo aqui.
    BEIJOS
    LUKA.

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  2. adorei teu conto, prendeu-me do começo ao fim, parabéns Beijos da Jady

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  3. rsrs Oi Jady. Valeu mesmo, mas não era bem um conto. rsrsrs. Era o prólogo do próximo livro. Mas muito obrigado ;). Beijão

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