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domingo, 18 de setembro de 2011

Narrar, quer dizer, dar sentido.

Quem somos, onde estamos e como chegamos até aqui? Perguntas que em algum momento da vida cada um de nós já fez. Alguns com maior freqüência, outros nem tanto. Quando olhamos para trás, vasculhamos o nosso passado, o que encontramos para dar sentido àquilo que somos hoje? É um exercício difícil, mas vou tentar executá-lo agora, em breves linhas.


Nasci em 1988, em um bairro da classe média carioca chamado Vila da Penha. Nunca fui uma criança que gostasse de ler. Livros em minha casa sempre existiram, mas nunca me chamaram a atenção, e com isso pude levar bem a vida sem nunca entrar no mundo da imaginação literária, ao menos, é claro, que me fosse obrigatoriamente necessário, como no caso das provas da escola. Contudo, aos meus 13 ou 14 anos, formamos em meu bairro o nosso grupo de RPG. Um jogo estranho, que aparentemente não duraria muito, mas que teve a força de nos cativar e viciar por longos anos. Todo dia era uma diversão. Eu e meus amigos éramos pessoas diferentes a cada dia, habitando lugares distintos, vivendo aventuras que nossas vidas de garotos e garotas do subúrbio jamais proporcionariam. Naquele momento, minha imaginação começou a ser desenvolvida. Primeiro de forma restrita, limitando-me a habitar o mundo que outras imaginações construíram, sejam pelas revistas compradas em bancas de jornal, sejam pelas fantasias de meus amigos, que se comprometiam em narrar a história. Então, chegou a minha vez de criar mundos. Agora a missão de construir um cenário, povoá-lo de pessoas, e fabricar o sentido para sua existência estava em minhas mãos. Como não fracassar em tal missão? Foi neste momento que a literatura se apresentou como uma resposta. De início, apenas com pragmatismo. Ela era um instrumento, que me auxiliava na gênese de minhas próprias idéias. Depois, transformou-se em um hobbie, então uma necessidade, e por fim um vício. Minha criatividade nunca antes esteve tão aguçada, todavia, tudo o que é bom dura pouco, e assim o nosso grupo de RPG se desfez. Mas as marcas deixadas por ele permaneceram: a literatura e a imaginação continuaram cada dia mais fortes. Toda noite, sonhava com realidades alternativas, construía cenários, enredos, tramas das mais mirabolantes, que, infelizmente, nunca viam a luz do dia, condenadas a viverem eternamente trancafiadas em minha mente. Até que certa noite, anos depois, quando a história de O Véu – que nem nome tinha na época – já estava completamente forma em meu consciente só que em vistas de se perder com o tempo e a falta de uso, uma amiga fez a grande proposta: “escreva esta história em livro que eu leio”. Um livro. Nunca havia passado por minha cabeça traduzir minhas histórias em livro. Seria possível? Sem querer, Nathália havia lançado as sementes do que hoje seriam os dois volumes da saga que ganha cada dia mais leitores na internet. Naquela época eu estava de férias, depois de passar pelo primeiro período de minha graduação em História, e resolvi usar esse tempo para escrever. Sentei um dia e comecei. Acreditei que não teria paciência de completar, mas tentei ainda assim. Na minha primeira experiência o prólogo estava pronto. Li e gostei, começando vislumbrar no horizonte a possibilidade de conclusão da obra. Foram três meses escrevendo. A história ganhava vida a cada batida nas teclas do computador. A emoção de dar razão aos personagens, a excitação de ver algo que até então sequer imaginava ganhar o mundo, ser concretizado em formato de páginas de Word. Enfim, ao final de fevereiro do ano de 2009, O Véu estava pronto, e então começou o que hoje posso chamar de minha vivência literária.



Acho que consegui resumir bem isso que chamei de trajetória literária, minha história, minha formação. Contudo, esta é apenas um pretexto para concluir a discussão aberta com o artigo anterior: Palavras. Entre a reprodução e a criação. Artigo este que, confesso, ficou um pouco corrido e impreciso. Peço desculpas por isso.

Mas o que chamo a atenção ao usar minha própria trajetória como pretexto de um ensaio é o fato de que, todo esse enredo, toda essa lógica que parece ligar meu jogo de RPG com a escrita de O Véu só pode ser construída através de um recurso que eu uso a todo o momento: narrar.

Olhando para trás, vendo aqueles acontecimentos do passado. Foi assim que as causalidades, que na época em que foram vividas não apresentavam nenhum sentido, puderam ganhar um enredo, uma trama, que fosse capaz de produzir uma história com começo, meio e fim. Enquanto eu jogava RPG, jamais imaginei que aquele hobbie bobo, uma brincadeira de criança, pudesse fazer do que sou hoje. Que pudesse me conduzir à criação de minha própria literatura. Assim como escrever O Véu jamais se mostrou para mim como uma forma de abrir as portas para o mundo das letras. Eu o escrevi sem saber o que vinha depois, sem saber que logo após criaria um blog, que o disponibilizaria na internet e, principalmente, jamais imaginei que seria tão amplamente lido e elogiado. Quanto a isto, só tenho o que agradecer.

Mas nenhum destes acontecimentos em sequência estavam dados para mim logo de início. Esse sentido, quem teve de atribuir fui eu. Olhando para trás, traçando uma linha que pudesse guiar de forma cronológica e linear, uma trajetória de vida que pudesse apagar as demais possibilidades que me lançavam no abismo da incerteza e assim me guiar por um caminho reto. Toda essa razão, esse nexo só pode ser construído através de um esforço de interpretação e, também, de narrativa.

Narramos o tempo todo, esta é nossa forma de dar sentido ao mundo. Os fatos isolados ganham conexão através de nossa fala, de nosso poder de imaginar as causas e efeitos. Nesse sentido, de alguma forma ou de outra, todos nós somos escritores. Todos nós sabemos criar uma história, pois a fazemos sem nos darmos conta disso. Pois isso é uma das milhares de potencialidades de ser humano: a de criar nexo, criar realidades, através das palavras.



quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Palavras: entre a reprodução e a criação

Qual o poder das palavras? Seriam elas meras ferramentas que utilizamos como forma de narrar o mundo? É comum concebermos o poder da linguagem na sua dimensão de dar forma ao que percebemos com nossos sentidos. Descrevemos o mundo, o explicamos através de discursos e o reproduzimos com nossa voz e nossa escrita. Contudo, este é apenas um, e talvez o mais simples, trabalho que a narrativa tem a nos oferecer, pois mais do que apenas mimetizar o real, as palavras tem força própria, sendo capazes também de criar, elas próprias, realidades que vão além dos nossos sentidos.
E como isso acontece? Acontece, pois, nem tudo o que nós conseguimos pensar possui uma correspondência no mundo físico. Quando pensamos em coisas concretas, como cadeiras, árvores, pessoas e animais, nós podemos dizer que os conceitos que dão nomes a estas coisas são sim maneiras de descrevê-las, de nomear. Contudo, quando nos referimos a abstrações, aí o problema muda de figura. Pois a abstração não possui correspondência na realidade sensível a nós, mas sim são especulações de nossa imaginação, que tentamos, de alguma forma, traduzi-las a fim de ganhar entendimento. Neste processo, não apenas estamos reproduzindo uma verdade que está dentro de nós, mas sim conseguimos transmitir aquilo que está dentro de nós de forma a criar palavras que, ao fim e ao cabo, ajudaram a construir a realidade em que vivemos
Sei que está confuso, mas acredito que este exemplo possa elucidar: pensemos nos conceitos de belo e de feio. Ambos os vocábulos não existem na natureza como algo dado. Em cada parte do mundo, em cada tempo em cada grupo, as noções do que é bonito e do que é asqueroso, variam. Sendo assim essas noções são impossíveis de serem encontradas no mundo em sua inteireza. É desta forma que podemos conceber as palavras não como reprodutoras de uma realidade – visto que no caso da beleza, ela não existe como dado a ser analisado -, mas elas próprias criam uma realidade que nos atinge e constitui o nosso mundo. Todos nós somos capazes de dizer o que é feio e o que é bonito, pois estes valores já estão naturalizados em nossas vidas. Essas palavras já ganharam tal força que são uma realidade para nós, mesmo que estas não existam de fato na natureza. Quando dizemos que determinada pessoa é bonita, são nossas palavras que criaram essa beleza, pois elas são fruto de nossa intelectualidade.

Pensemos em outros termos e vamos problematizar as palavras “certo” e “errado”. Elas regem todo o código ético e moral de qualquer sociedade, mas não podemos dizer necessariamente que elas traduzem, descrevem ou representem algo que exista no modo como dado imanente. É correto agir assim, e errado agir desta maneira. Elas pautam a nossa vida, regem nossa existência e comandam a maneira como somos educados e educamos, mas elas não existem na natureza, não são possíveis de existir a menos que nós, seres humanos dotados de palavra, consigamos criá-las. Nós criamos para reorganizar o nosso mundo, para dar a ele uma cara que mais se pareça com a que nós queremos deles.
Palavras organizam o mundo, dão a ele um sentido. Elas o descrevem em determinadas situações, e o completam em outras, tudo isto é o poder da linguagem. É desta maneira que somos capazes, ao ler um bom romance, de nos transportarmos para dentro dele e sentir aquilo que os personagens sentem. Pois a literatura está criando um mundo para nós através de palavras, tal como nós fazemos o tempo todo, no nosso dia a dia, nomeando e inventando expressões que dêem conta de tornar a nossa vida mais fácil de compreender.