Com a iminência da publicação de "O Véu" e a ansiedade provocada por isso, aproveito este espaço para dar uma amostra de meu novo trabalho - "Despertar" (Título provisório) - cuja história contará os primeiros dias de Ian no momento em que acorda para suas demais vidas.
Espero que apreciem
Willian Nascimento
A neve corria macia por entre minhas mãos. Aquela já devia ser a
terceira vez na semana, e quem sabe a décima no mês. O mesmo chão
branco, os mesmos cristais de gelo, os mesmos pinheiros. Como devia
ser não ter peso? Provavelmente uma sensação muito semelhante
àquela. Meu corpo sequer fazia pressão contra meus membros e eu já
estava me impulsionando para frente novamente, em uma velocidade
avassaladora. Correndo... ou melhor, trotando por aquela mata virgem.
Meus quatro membros tocavam o chão. A neve era atirada para trás
a cada pulsão que eu empregava. Meu trote era perfeito, como o de um
cão de caça. E por falar em cães, meu perseguidor estava se
aproximando. Atrás de mim, um belo espécime de lobo mantinha à
duras penas uma proximidade minimamente digna. Sua língua pendia
para o lado, conforme suas baforadas cuspiam saliva que
instantaneamente se congelavam antes de tocar o solo. Ele estava
cansado, mas já estávamos chegando a nosso destino.
Foi então que, chegando a hora, cravei mãos e pés no tapete
branco e freei bruscamente. Meu companheiro, desajeitadamente, fez o
mesmo, atropelando-me e nos fazendo rolar ainda alguns metros antes
de finalmente pararmos por completo. Eu gargalhava alto, enquanto era
vítima de sua língua úmida que lambuzava meu rosto. Brincamos
ainda alguns minutos, próximos a um grande barranco. Inconsequentes
como éramos, nem nos preocupamos com o fato de que, com um pouco
menos de atraso em nossa freada, acabaríamos os dois no fundo do
desfiladeiro.
Mas não queríamos, nem conseguiríamos nos preocupar com isso.
Afinal, não fora para isso que viemos de tão longe para aquele
lugar. E a razão de nossa corrida já estava nos esperando. De um
instante para outro, paramos com nossa brincadeira infantil e nos
pomos sentados para apreciar o belo espetáculo que se abria diante
de nós. O céu, antes cinzento e mórbido, agora que abria para uma
aquarela ondulante. Riscos de todas as cores, dançando em um ritmo
próprio, inebriante. Um fenômeno que eu costumava reconhecer como a
passagem das almas, que transcendiam do mundo terreno para a dimensão
espiritual, e que séculos depois descobriria que o ocidente o
chamava de Aurora Boreal.
O lobo estava ao meu lado, sentado e ainda se recuperando do
desgaste que nossa injusta perseguição lhe impôs. Eu acariciava
seu pelo e recebia de bom grado o calor que emanava de seu dorso
corpulento. Ganhei uma lambida carinhosa no rosto e retribui com um
afago entre as orelhas. Olhei para o céu. Era lindo demais e eu não
queria nenhuma outra companhia. Nem dos membros de meu clã, nem
mesmo dela... Pois aquele era o nosso lugar secreto. Meu e de Raj.
— Sentirei saudades, amigo — falei para meu companheiro,
enquanto sentia uma leve dor de cabeça incomodar.
Somente um ganido me foi dado como resposta, mas que foi o
suficiente para deixar claro o que ele sentia. Fiquei triste, mas ao
mesmo tempo grato pelo sentimento que acabava despertando nele.
— Sinto muito... — tentei me desculpar, encostando minha testa
em seu pescoço e aproveitando para esconder meu rosto que ameaçava
despejar algumas lágrimas. Eu não gostava de chorar na frente de
ninguém de minha aldeia — Mas está na hora de eu ir... Sei que é
precipitado... Que pode dar tudo errado, mas... Você me conhece.
Sabe que não resisto a uma aventura. Ainda mais com ela...
A dor começava a incomodar mais. Mais intensa, e concentrada.
Logo atrás dos olhos, uma pontada como se alguém estivesse
introduzindo um dedo por dentro de meu cérebro.
— Só queria me despedir de você antes de partir — falei,
buscando ignorar a dor — Eu e... — Não consegui me lembrar do
nome.
Como não conseguia? Estávamos falando dela agora mesmo.
— Eu e... — a dor estava ficando insuportável — Eu e...
Ela... Vamos fazer hoje... E se a magia funcionar... Vai ser ótimo.
E como sempre acontecia nesta parte, a enxaqueca assumia um grau
tão agudo que me fazia perder a sensação do mundo a minha volta.
Estava na hora. Eu iria acordar...
Aos poucos minha visão se tornava embaçada, até tudo ficar
escuro. Porém, ao contrário de logo perder completamente o contato
com a floresta de pinheirais, naquela noite em específico meus
demais sentidos insistiam em guardar algumas sensações daquele
sonho. O cheiro úmido das plantas, o frio e a sensação dos flocos
de neve caindo sobre a pele. Contudo, estes últimos se tornavam mais
agressivos e seus impactos me obrigavam a acordar com mais
velocidade.
Quando abri os olhos, dei de cara com a luz do poste. Os pingos de
chuva atacavam meu corpo, completamente ensopado e desprotegido
devido a fina roupa que eu usava. De um salto, levantei-me, para dar
conta de onde estava. Em uma olhada rápida em torno, reconheci
automaticamente minha posição, embora custasse acreditar que
pudesse estar na Praça da Rua Volta, cerca de cinco quadras de minha
casa, onde, eu jurava, havia adormecido antes de acordar naquele
lugar.
Assustado, olhei mais atentamente a minha volta a procura de
alguém, ou ao menos de alguma resposta para tudo aquilo. Não
encontrei nem um, nem outro. Levantei e estava descalço. A dor de
cabeça havia desaparecido, mas ela sequer tangenciava minhas
preocupações. Minha respiração ficou mais descompassada e o medo
poderia me dominar, se a racionalidade não cobrasse uma atitude e me
obrigasse a pensar. Não importava o quão maluca fosse a resposta
para eu estar ali naquele momento, não seria debaixo de chuva que eu
iria encontrá-la.
E com esta convicção, disparei para casa. Venci facilmente a
distância que me separava de minha rua, com um vigor e
condicionamento que não acreditava possuir. Ao chegar em casa,
deparei-me com o portão trancado.
Droga! Praguejei, deixando o desespero também participar de meu
infortúnio. Procurei no bolso de meu short pela chave, mas nada. Não
é possível, como então eu saí? Naquele instante, a resposta
parecia ter vindo na forma da janela aberta de meu quarto. Olhei
para cima e a contemplei. Eu também me lembrava de tê-la fechado
antes de dormir, para que a tempestade não alagasse meus aposentos.
Não. Impossível. Não havia forma de eu saltar pela janela
dormindo sem quebrar ao menos uma perna. Devia haver outro modo. Mas
como já havia percebido antes, não encontraria nenhuma resposta ali
fora. Então tratei de trepar o muro de casa para me proteger da
chuva. Invadir o quintal foi mais fácil do que supunha, mas agora
havia outro problema: como entrar na residência? A alternativa de
dormir no sereno não era agradável.
Rondei a casa, atrás de alguma passagem aberta. A sorte me
sorriu, ao menos. Vi que a janela que dava acesso a lavabo estava
entreaberta. Sem pensar, meti a mão e forcei a entrada. A janela era
velha e um pouco enferrujada, por isso que muitas vezes não
conseguíamos fechá-la por completo. Mas como naquela noite em
especial eu demonstrava uma saúde muito satisfatória para meus
padrões, assim também o foi quando tentei abrir a janela. E ela se
abriu sem muita resistência.
Na lavanderia, tratei de pegar uma toalha no secador de roupas e
me enxugar. Não queria ensopar a casa. Tirando a roupa molhada e
colocando-a dentro do tanque, enrolei a toalha na cintura e foi com
cautela até meu quarto. A casa estava silenciosa, o que era uma boa
notícia, possivelmente. Passei pelo quarto de meus pais antes de
chegar ao meu e fiquei feliz em ver que ambos dormiam a sono pesado.
Pelo menos minha aventura noturna não fora percebida por nenhum dos
dois.
Esgueirei-me pelo pelo corredor até me refugiar em meu aposento.
Fechei a porta e fui até a janela. A mesinha que ficava diante desta
estava ensopada, mas não me importei. Olhei para uma última vez
pela abertura antes de fechá-la. Queria entender como afinal eu
havia fugido de casa, mas eu não estava com cabeça para pensar.
Tentei lembrar do sonho e consegui visualizar tudo com muita nitidez,
até seu final, quando a enxaqueca voltou a me incomodar.
Interpretei aquilo como um sinal para não fuçar mais aquela
história. Não por aquela noite, ao menos. Conformado, vesti um
short seco e me deitei. Achei que não fosse conseguir dormir,
todavia subestimei meu sono pesado. E logo eu estava, mais uma vez,
entregue ao mundo dos sonhos. Só esperava, daquela vez, acordar em
minha cama.
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