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quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Prólogo - Histórias em volta da fogueira


De todas as férias que passava, não havia nenhuma melhor para Ana do que as que ocorriam no sítio dos avôs em Três Corações, interior de Minas Gerais. O Estado mineiro é famoso por suas lendas locais e superstições dos mais variados tipos, mas Ana gostava especialmente desta cidade aonde havia as lendas de bruxas que ela tanto amava.
Suas tias, que também moravam na região, tinham o costume de lhe contar inúmeras historias enquanto assavam marshmallows em volta da fogueira no quintal da casa delas. Teresa e Samanta eram suas melhores amigas e sempre se diziam bruxas de alto poder, coisa que Ana jamais duvidou. Tal crença sempre foi forte no coração da garota e certos acontecimentos só fortaleciam sua fé no poder delas.
Ela ainda conseguia se lembrar muito bem da noite em que acordara doente com o termômetro marcando quarenta graus de febre. Tia Teresa lhe trouxe um chá de ervas que, segundo ela, era capaz de curar quase todos os tipos de enfermidades. Com apenas oito anos na época a menina não teve receios em acreditar com todas as forças na cura milagrosa e aparentemente os céus recompensaram sua fé, pois no dia seguinte estava curada. Esse e outros casos só serviam para confirmar para Ana o poder que aquelas duas mulheres possuíam.
Sílvio e Marieta, seus avós, reforçavam suas crenças. Sempre confirmaram para Ana o poder de suas filhas, contando casos em que elas conseguiram mexer com as forças da natureza. Numa certa ocasião, eles contaram, uma onda de calor atacou o Município de Três Corações, trazendo algumas doenças de caráter misterioso. Eles se recordam que numa semana as irmãs Samanta e Teresa saíram de casa alegando que iriam para o interior da floresta onde havia um local especial onde elas poderiam realizar um ritual que poria um fim no problema. Logicamente seus pais foram contra tal empreitada, principalmente pelo fato das duas irmãs apenas terem doze e quatorze anos, respectivamente, na época. Mas a proibição não adiantou muito e naquela noite as duas haviam fugido as escondidas e ficaram desaparecidas por uma semana. Seus pais procuraram por elas de todas as formas possíveis sem obter resultados vantajosos. Mandaram inúmeros grupos de busca para a floresta, mas todos voltaram sem resultados e a policia começava a cogitar a idéia de um seqüestro. Porém, exatamente uma semana depois, as duas irmãs reapareceram. Ilesas e aparentemente saudáveis, elas diziam que foram bem sucedidas no ritual mágico.
Sílvio e Marieta ficaram irritados, mas depois que tiveram suas filhas de volta, foram capazes de perceber que de fato as coisas haviam mudado e que o clima estava bastante ameno. Sem saber o que fazer, deixaram aquela passar, mas não sem antes arrancar uma promessa das duas de que jamais fariam aquilo novamente.
Ao contrario de seus avôs, sua mãe, não concordava com tais comportamentos de suas irmãs. Helena era na época professora Adjunta da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde lecionava biologia. Ela não compartilhava das crenças de Ana. Para Helena, mágica não existia. Na verdade, para ela nada que não pudesse ter uma explicação baseada em átomos, enzimas ou teorias da física não existiam.
“Por isso não arrumam maridos”, era o comentário que sempre fazia.
Apesar dessa opinião, Helena nunca forçou Ana a seguir suas idéias, embora não gostasse da influência que suas irmãs tinham sobre a menina.
Seu pai, apesar de também ser descrente, em nada se importava. Ele sempre dizia que crianças deviam ter o direito de sonhar. Para ele, que era psicólogo, essas fantasias eram importantes para o desenvolvimento infantil. “Crianças devem ser crianças”, ele sempre dizia.
Com essa família, Ana nunca teve dificuldades em deixar sua imaginação correr. E sempre que cabia a ela escolher aonde seriam as próximas férias, a resposta já estava gravada em sua língua: para Três Corações.
Porém, as suas férias de meio de ano, próximas da data de comemorar seu décimo segundo aniversário, poriam um fim a esse mundo de magia.

*
Era Inverno e mais uma vez Ana tinha decidido passar seus dias de férias na casa dos avôs. As três primeiras noites que passou, ela ouviu ótimas histórias de bruxas e magos em volta da fogueira no quintal da casa de suas tias. Samanta lhe contou uma lenda antiga, sobre uma família de magos muito antigos que habitava as regiões do norte do Canadá: a família Garow.
“De acordo com a lenda, essa família, diferentes dos demais magos existentes, possuía uma forte ligação com a natureza da região, sendo capazes até mesmo de controlar o clima gelado e os lupinos locais. Além dos poderes incomuns, seus traços físicos eram muito peculiares e em muito lembravam aspectos canídeos. Dizem até mesmo que a lenda dos lobisomens nasceu devido a esse clã.
“Durante a caça às bruxas, inúmeras foram as tentativas dos inquisidores europeus de erradicar esse grupo. Porém, devido ao seu grande poder e sua afinidade com a natureza local, nunca foram derrotados, obrigando os colonizadores a não adentrar seus territórios e mantendo a região conservada.
“Como os Garows não demonstravam instintos expansionistas, viveram em paz com os russos que vieram a habitar essa região nos anos seguintes. Até que desapareceram.”
- Mas como tia Samanta? - a garota ficou pasma - Os russos finalmente conseguiram derrotar os Garows?
- Possivelmente não. - respondeu Teresa – Apesar de a Rússia possuir excelentes grupos inquisidores na época e seu povo já ser acostumado ao clima gelado, duvido que fossem capazes de deter a afinidade dos Garows em sua terra.
- Mas então como eles puderam desaparecer?
- Ninguém sabe – agora era Samanta quem dizia – esse é um dos maiores mistérios do mundo mágico. Como um clã tão poderoso pôde simplesmente ser erradicado? - ela deu de ombros - A noticia correu o mundo quando começou a circular na Europa o diário de um colono Russo que habitava a região e tinha relações com os membros do clã. Seu diário continha alguns relatos da dizimação dos Garows. Esses relatos mostram o grau de destruição em que a aldeia foi encontrada. Todos os moradores foram brutalmente assassinados, provavelmente por um grupo mais feroz que eles, devido aos tipos de ferimentos encontrados nos corpos.
Ana ouvia cada detalhe com muita atenção, tendo até mesmo que se lembrar de respirar em algumas seqüências.
- Nossa! - exclamou - Quando crescer, vou descobrir o que aconteceu com o clã Garow.
- Claro que vai querida – encorajou Samanta com um sorriso – mas agora você vai é voltar para casa da vovó para dormir.
- Exatamente. – completou Teresa – Já está tarde e se você se atrasar mais meus pais vão nos mandar para a fogueira.
Ana riu e concordou.
- Vou indo sim. Mas posso fazer uma última pergunta?
- Claro – encorajou Samanta
- Como eles eram? Digo, eram humanos?
- Claro que sim. Todos os magos são humanos, querida. Magia é para todos e aposto que as habilidades dos Garow, apesar de incomuns, foram fruto de um intimo contato com sua terra. Afinal, eles moraram naquela região por cerca de mil anos e nesse tempo aprenderam muitas coisas.
- Claro que tem a questão da aparência – lembrou Teresa.
- Como assim? – a garota se interessou.
Bem, contam as lendas que a grande afinidade que os Garow tinham com a sua terra acabou mudando a sua própria fisionomia. – e fez uma pausa para acrescentar um ar de mistério a narrativa – Parece que a ligação deles com os canídeos deram a este grupo algumas características bem bestiais como unhas em forma de garras e caninos pontiagudos. Outra característica forte no clã eram seus intensos olhos azuis. Todos os relatos sobre os Garows falam desses olhos. Parece que o efeito que causa em quem vê é impactante.
- Eles deviam ser bem bonitos – comentou Ana.
- Bem, tem gosto pra tudo – riu-se Teresa não concordando por completo – Então, vai querer companhia pra casa?
- Não Tia. Já sou crescida.
- Que ótimo. – felicitou Samanta – Então vai logo. Amanhã fazemos outro programa. – e, de repente, ela deu um pulo lembrando-se de uma cosia – Espere. Eu quero que leve isso contigo.
Samanta remexeu o bolso do casaco à procura de algo, até que enfim encontrou um pedaço de pano, aparentemente muito velho.
- O que é isto? – perguntou a garota um tanto enojada pela sujeira do tecido.
- Abra – recomendou Samanta.
Após desdobrar o pano sujo, Ana encontrou uma mancha. Ela olhou para as tias interrogativamente e depois focalizou a atenção novamente no presente. Aos poucos foi identificando os aspectos da estranha mancha e percebeu que tinha um padrão ali. Logo percebeu se tratar, não de uma mancha, mas sim de um desenho de aparência bem rústica. Depois de poucos segundos a garota conseguiu identificar a cabeça de um lobo estampada no tecido. A face do animal, toda em estilo tribal, se encontrava de frente e com um olhar ameaçador. O desenho não tinha muitos traços, mas era bonito assim mesmo.
- Esse é o símbolo da família Garow. – explicou tia Teresa – É uma relíquia, talvez uma das poucas que um dia pertenceu à tribo.
O rosto da garota se iluminou com a informação.
- Serio! Obrigado! – Exclamou enquanto voava no pescoço das tias num forte abraço – Mas como você conseguiu?
- Bem, como você sabe, fomos ao Canadá algumas vezes na nossa vida. Numa dessas viagens participamos de uma excursão pelas tribos indígenas da região e encontramos essa relíquia num desses lugares. Ela estava sendo vendida como lembrança por pessoas que provavelmente saquearam o lugar antes de nós chegarmos. - e completou com um sorriso amarelo - Reconhecemos a autenticidade do símbolo e conseguimos pechinchá-lo fazendo o vendedor acreditar que não era nada de valor.
- Legal – repetiu a garota sem se importar com a trapaça das tias
Quando Ana as largou, Teresa disse:
- Sabemos o quanto você gostou desse tipo de clã em particular, então resolvemos lhe dar isso. – e alertou – mas, cuide bem dele. Temos esse símbolo há anos. - brincou.
E depois de se despedir de Teresa e Samanta, Ana saiu para a casa dos avôs. Estava escuro e deserto no caminho que levava até o sitio de Sílvio, mas Ana adorava a sensação de perigo que envolvia andar sozinha à noite. Apesar do distrito de Três Corações não ser violento e as chances de que algo aconteça com ela durante os dez minutos de trajeto da casa de suas tias até a casa de seus avós ser de uma em um milhão, Ana gostava de se sentir destemida e encarando o desconhecido.
O vento começava a soprar com força fazendo os cabelos curtos da menina esvoaçarem. Era um fenômeno normal nas noites da região e que Ana adorava. Além de gostar da sensação do vento acariciando seu rosto, essa corrente noturna aumentava o ar sobrenatural da região que sempre a deixava de pelos arrepiados.
Mas a brisa começou a soprar com mais força exigindo que ela levasse o braço à frente do rosto para proteger os olhos. Um som começava a ser produzido em seus ouvidos e ela se lembrou de suas tias dizendo que os ventos muitas vezes carregavam mensagens distantes, embora Ana nunca tenha conseguido interpretar nenhuma. À medida que chegava perto de casa, Ana sentia que o vento em seus ouvidos começava a ganhar forma, até finalmente se tornar uma mensagem clara que Ana pôde interpretar.
E ficou aterrorizada com o que escutou.
Matar
Quando ouviu isso, o medo tomou conta da jovem garota. Ela olhava desesperadamente em sua volta tentando localizar a boca que emitia tal mensagem. Aquela voz gélida parecia pertencer a alguém cruel, que talvez nem humana fosse.
Matar
De novo e as lágrimas começaram a querer sair de seus olhos, mas ela as segurou. Não gostava de chorar na frente dos outros e muito menos daquilo que tentava apavorá-la.
- Quem está ai? – ela gritava para o escuro. Sem resposta. Ela tentou juntar toda a coragem que tinha para continuar falando – Eu sou sobrinha das duas maiores bruxas da região. Não se meta comigo ou você está frito!
Agora o vento ria do comentário da jovem menina. Mas ao invés de responder, ele foi sendo levado para longe. Porém, os sussurros continuavam soando em seus ouvidos e desaparecendo aos poucos. Sussurros que continuavam a dizer:
Matar, matar, matar. Matar as duas.
O vento agora era levado em direção ao caminho por onde Ana havia vindo.
Tias, um medo atravessou o coração da pequena e conseguindo se livrar da paralisia em seus músculos causada pelo medo, ela correu como nunca na vida em direção a casa dos avôs. Quando chegou, entrou gritando desesperada:
- Vô! Vó! Rápido! As minhas tias estão em perigo!
- O Que houve minha filha? - perguntou sua avó largando a revista que lia e se erguendo da poltrona ao notar seu desespero.
- Vó. Eu ouvi alguém dizer que vai matar a tia Teresa e a tia Samanta.
- Onde você ouviu isso? Quem te disse? - a velha começava a ficar preocupada.
- Eu ouvi. O Vento me disse.
- Como?
- Por favor, vovó! Chame a polícia, alguma coisa. Chame o vovô!
- Seu avô saiu querida. Vai demorar um pouco para chegar.
- Mas vão matar as tias! – Agora Ana não conseguia segurar as lágrimas em seus olhos e foi então que se iniciou um choro soluçante que impedia Ana de continuar a falar com precisão.
Vendo a situação desesperadora da neta, a avó a abraçou e disse:
- Calma minha filha. – e vendo que não conseguia acalmar a garota, propôs – Vamos lá na casa das suas tias. Veremos se estão bem. Vou levar o celular caso aconteça algo. Ta bem?
A garota concordou saindo em disparada até a casa das tias. Mesmo limitada pela idade, Marieta lutava para acompanhar os paços da garota. Quando finalmente chegaram, tudo estava transpirando uma enorme paz.
- Viu queria? Está tudo bem.
Mas Ana ainda não estava completamente convencida. Ela tinha que entrar e conferir. Porém, não teve tempo para isso, pois logo um clarão surgiu do interior da casa e um estrondo de explosão derruba a ela e a sua avó no chão. Ana sente o ouvido zumbir devido ao barulho e quando consegue abrir os olhos só consegue ver chamas no local onde antes havia uma casa. O fogo conseguiu se espalhar com uma velocidade nunca imaginada e toda a casa ardia em meio às chamas.
- Tia! – Ana sentia seus pulmões arderem a cada grito – Tia Samanta! Tia Teresa!
Ana gritava sem obter respostas até que chegou uma próxima visão que fez sua voz se calar num engasgo. Pois no meio das chamas a menina pode identificar uma silhueta que se encontrava na janela.
Tia? Ela pensou, mas no fundo sabia que não era. A silhueta parecia pertencer a um homem. Era alta e forte. Mas como alguém sobreviveria no meio daquele inferno? Apesar de não poder enxergar o rosto daquilo que estava na janela da casa, sabia que aquilo a encarava. Então o medo voltou a brotar no fundo de seu corpo, assim como acontecera quando ela ouvira a voz na estrada de terra. Um medo tão forte que toda a sua voz era sufocada quando tentava alertar sua avó do que ela via.
Mais um estrondo. E a última imagem na cabeça de Ana ficou sendo a da casa e do ser misterioso desaparecendo num segundo clarão.

*
Ana acordou duas semanas depois. Descobriu que o corpo de bombeiros local acusou um escapamento de gás como a causa da explosão. E apesar de tentar, não importava o que Ana dissesse ou o quanto gritasse, pois ninguém acreditava na sua versão sobre ventos malignos. Seus relatos sobre a noite não eram levados a sério e com o tempo nem sequer eram ouvidos, servindo apenas para que Ana ganhasse anos de visitas à psiquiatras de diferentes estados do país e remédios com nomes cada vez mais complicados.
Anos se passaram e aos poucos Ana foi desistindo de sua versão. Na verdade, o tratamento devia estar funcionando, pois nem mesmo ela conseguia mais acreditar no que tinha testemunhado. O fato de não acreditarem nela e o medo de acabar como a avó – que foi internada num hospício ao enlouquecer após o acidente com as filhas -, fizeram Ana finalmente se calar.
À medida que foi crescendo, Ana foi também esquecendo. Esqueceu-se das antigas histórias que lhe contavam suas tias, das horas passadas em volta da fogueira. Magia e bruxas eram agora para ela apenas sonhos de uma garotinha, que morreram junto com suas tias naquele terrível acidente.

Bem breve para download...

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