Sigam-me os Bons

sábado, 1 de maio de 2010

O Salto

Saudações Amigos.
Eu já havia avisado em alguns posts anteriores que atualmente estou trabalhando em um novo romance que trará anjos ao palco como protagonistas.
Esse presente conto é, na verdade, primeiro capítulo do romance "O Salto", que já se encontra em processo de conclusão. O conto já foi publicado na homepage Mais 1 Livro. Para conferir, basta acessar o link Quinta do Conto, no canto direito do site. Para aqueles que possuam contos, ensaios, artigos ou resenhas  e estejam interessados em participar, o moderador, João Paulo Oliveria está fazendo um ótimo trabalho de publicação e está aberto ao recebimento de novos colaboradores. O blog está começando agora, mas já demonstra grandes potenciais de crescimento. É uma boa oportunidade para quem quer ter seu tabalho exibido.
Pois bem, sem mais delongas, apresento-lhes "O Salto"



E ali estava eu, mais uma vez. Novamente me sentindo a criatura mais desprezível do mundo, mais uma vez enganando a mim mesmo. E acima de tudo, mais uma vez querendo aquilo com todo o meu ser.
Era claro para mim que aquilo era errado, que eu deveria estar longe, mas a todo o momento meu corpo era arrastado de volta para lá, para ela. As noites eram minhas horas preferidas, pois ali eu poderia vê-la dormir. O fato de gostar mais dela adormecida não servia ao propósito de me manter oculto, pois mesmo acordada, ela não me veria. Assim como não me via de dia enquanto estava trabalhando, ajudando a avó ou lendo aqueles periódicos complicados de medicina. Ela nunca me via, pois essa é a condição: estarmos sempre perto, mas nunca sermos vistos.
Acho que era exatamente por isso que eu a preferia quando estava dormindo, pois dessa forma, pelo menos eu conseguia aceitar miseravelmente o fato de ela nunca poder me ver. É tão triste estar na sua frente o tempo todo, acompanhar seus passos e vê-la olhar para mim sem me enxergar, vendo através de mim como se eu fosse apenas ar, como se não existisse. Mas também havia outras vantagens que me faziam preferir acompanhá-la enquanto ela estava adormecida. Nesse estado, onde seu espírito saía e vagava pelas mais longínquas regiões, e onde seu corpo ficava calmo, sereno. Onde seu rosto, agora tomado de uma expressão angelical, me fazia sentir, ao mesmo tempo, alegria e nojo de mim mesmo.
Só mais uns minutos, eu pensava, eu só estou fazendo meu trabalho, tentava acreditar, ela é como todas as outras, eu queria loucamente acreditar. A todo o momento eu me enganava, sabia disso, mas como o pior dos mentirosos, fingia não notar e achar que meus argumentos eram válidos, que justificavam minha permanência ali por mais alguns intermináveis minutos.
Por um lado, era verdade que eu estava realizando meu trabalho. Como todo o anjo, minha missão era simples e clara: Protegê-los, sem jamais intervir, Observar, sem jamais ser visto. Então eu estava lá. Cuidando dela, protegendo-a a minha maneira, mas aquilo não era a completa verdade. Pois, além dela, eu tinha a missão de proteger a todos. Eu não era exclusivo.
E foi ali, olhando suas expressões calmas e ouvindo sua respiração pesada, que me permiti voltar no tempo, mais uma vez. Para o dia em que a vi pela primeira vez. Além de proteger as pessoas, eu, como Ceifeiro, tenho também a missão de guiá-los na triste data da morte, ao encontro de meu Pai. E foi esse trabalho, considerado desagradável por muitos — eu ainda não me decidi quanto a isso —, que eu a conheci.
Em torno do leito da velha senhora Magno, num quarto pequeno e aconchegante, estavam toda a sua família e também alguns poucos amigos. Os familiares estavam em número reduzido, pois um Ceifeiro já havia visitado aquela família não fazia muito tempo. Sua filha Telma e seu genro Ivan já haviam sido levados antes. Abigail, uma amiga de trabalho tinha tomado conta disso, deixando apenas uma menina de cabelos castanhos que estava naquele momento ajoelhada diante da cama, e foi a única sobrevivente do trágico acidente. O marido de Camila, Felipe, também estava ali, pousando sua mão no ombro da neta. E com eles dois, Régis e Érica, também avós da pequena criança e pais de Ivan. Todos permaneceram calados, apreensivos, esperando apenas o médico que media o pulso da velha senhora dar seu diagnóstico.
Quando finalmente parou de examinar sua paciente, ele retirou os óculos do rosto e deu a triste notícia com a calma e distância que sua profissão exigia:
— Eu sinto muito — disse para os parentes, que se colocaram a chorar. As mulheres, mais livremente. Os homens, se segurando um pouco.
Mas de todos que ali estavam aquela que mais me chamava atenção era uma menininha de cabelos castanhos e faces rosadas. De todas, ela era a única que mantinha um brilho diferente no olhar. Enquanto os demais fitavam o corpo da velha senhora com pena ou tristeza, ela o encarava com esperança.  Com o foco fixo no corpo da avó, parecia que ela tentava de alguma forma atraí-la de volta, como se com o poder de seu olhar pudesse fazer com que a morta se erguesse da cama novamente. Uma fé realmente bonita, mas desnecessária. Já era tarde, e a alma de Camila já se encontrava ao meu lado naquele momento.
— Eu morri? — ela perguntou para mim assim que notou a condição a sua volta, onde eu era o único que conseguia vê-la ali.
— Sim — respondi com o mesmo tom distante que o médico usara para anunciar a morte de Camila para os presentes. Por que será que todos aqueles que trabalham com mortos tem que assumir essa distância?
— Meu Deus! — ela levou as mãos à boca — Pobre Clara. — e olhava para o rosto da pobre criança que ainda fixava sua atenção para o corpo de sua avó, esperando que ela se erguesse depois de um sono relaxante.
— Eu preciso acompanhar a senhora — informei colocando a mão em seu ombro e tirando-a dos devaneios.
Ela ainda precisou ficar um tempo para poder reagir ao meu toque.
— Eu... — ela me olhou um tanto hesitante, mas logo consentiu — Claro.
E sem dizer mais nada, fomos embora. Era bom quando as pessoas escolhiam ir de tão bom grado. Algumas vezes, eu precisava gastar horas para convencê-las de que o melhor era seguir comigo, que era a lei imutável e que o Pai às esperava do outro lado. Porém, sempre havia aquelas cujo medo ou vontade de viver, eu não conseguia vencer, sendo obrigado então a deixá-las para trás e permitir que suas próprias experiências as conduzissem para o caminho certo. Era triste ter de fazer isso, mas a regra ainda era clara: não intervir.
Assim, chegando ao ponto final, depois de sobrevoarmos toda a pequena cidade de São Donato, onde o céu crepuscular tingia as nuvens de laranja, chegou a hora de nos despedirmos. Ali, de pé sobre o teto de telhas de cerâmica da Igreja, que ficava logo acima do morro na entrada da cidade, eu me virei para Camila.
— É aqui que eu a deixo. — informei — A partir de agora, seu caminho ficará sob responsabilidade do Pai.
Ela hesitou mais uma vez, olhando para a direção de onde viemos.
— O que a aflige? — tentei ser solícito.
— Nada.
Mas eu não acreditei, e esperei pacientemente que ela fosse capaz de abrir o coração.
— Clara... — disse o nome quase que mecanicamente.
— O que tem ela? — perguntei, me lembrando que esse era o nome da garotinha que estava ao seu lado no leito de morte.
— Eu fico preocupada com ela — admitiu — Ela perdeu os pais tão recentemente e ainda tem dificuldades em interagir com as pessoas daqui. Eu sou, basicamente, sua única amiga. Ou era...
— Compreendo.
Seus olhos marejados começaram a fitar a cidade logo abaixo de nós. Aquela era uma vista muito bonita, capaz de prender a atenção até mesmo de uma criatura como eu, que já havia visto tantas coisas. Depois de admirá-la por algum tempo, seu rosto se voltou novamente para mim. Seus olhos queriam transmitir alguma coisa que eu demorei a compreender. Mas então, analisando melhor suas expressões, previ que dali viria um pedido.
— Por favor, — suspirou — Cuide dela para mim.
— Não se preocupe. — tranqüilizei-a — Eu sempre cuido. — e lancei-lhe um sorriso carinhoso.
— Não — ela argumentou, balançando a cabeça — Eu preciso que você cuide dela de verdade.
Apesar de me sentir um tanto ofendido, continuei a sorri com carinho.
— Eu cuidarei. — garanti
— Prometa-me que não a deixará sofrer nenhum mal.
— Eu prometo. — ri de forma suave. Já estava acostumado àqueles tipos de pedidos.
— Por Deus.
— Pelo Pai — respondi e ela sorriu aliviada.
— Tenha uma boa viagem — desejei.
— Obrigada — e levando as mãos ao peito num gesto de gratidão, desapareceu. Como acontecia com todas as outras, uma luz vinda do interior de seu próprio espírito a consumiu, fazendo-a desaparecer, e eu não era mais capaz de captar sua presença. E também, como acontece todas as vezes que me despeço de alguém, eu tinha aquela sensação de estar sujo por dentro. Enfim, ignorando-a mais uma vez, eu segui meu caminho.
Naquela mesma noite, voltei à casa de Clara. Já era noite e quando entrei pela janela encontrei a menina ajoelhada ao lado da cama, realizando uma prece silenciosa. Enquanto a esperava terminar e ir se deitar, eu passei a olhar pelo pequeno aposento. Seu quarto era decorado quase que totalmente de cor lilás. Sua cama, aonde ela se apoiava os cotovelos para orar, se encontrava bem arrumada e na cômoda ao lado estava uma foto da mulher que eu acabei de guiar.
— Papai. — foi a primeira vez que escutei a sua voz, ouvindo-a falar olhando para o teto — Por que você levou a minha avó?
Uma pergunta inocente, mas ainda assim, com uma pontada de ressentimento.
— Primeiro papai e mamãe, agora ela... — e fungou alto, segurando o choro — Por que você tem que me tirar todos os que amo? Por que seus anjos tiveram de levá-la?
Ela não foi mais capaz de segurar o choro e as lágrimas brilhantes começaram a descer de seu rosto. Como aquilo me doía. Não era a primeira vez que eu escutava esse tipo de desabafo e provavelmente não seria a última, mas não podia deixar de me sentir agredido por aquelas palavras.
— Eu... Eu estou de mal com o Senhor. Estou de mal com seus anjos — ameaçou com uma coragem que só era possível para quem aos poucos deixava de acreditar que era ouvida — Não quero mais saber deles — e soluçou — Por que vocês não fizeram nada para impedir...?
Eu queria tampar os ouvidos, queria poder fazer algo para que ela se calasse, mas não consegui. Eu poderia ir embora, mas resolvi ficar. Talvez por que eu ainda estivesse me sentindo em dívida com Camila e achava-me na obrigatoriedade de ficar ali pelo menos até ela adormecer, ou talvez por que, lá no fundo, numa parte bastante obscura e doentia de mim mesmo, eu acreditava que merecia ouvir aquelas palavras. Não sei a razão, mas fiquei. E foi então que ela finalmente cansou-se de orar e resolveu se deitar. Sem saber, eu havia testemunhado a última noite em que a ouviria falar comigo ou com qualquer um de minha espécie.
Clara se deitou e se cobriu. Agarrou um travesseiro com o qual enxugou as lágrimas de seu rosto e com ele dormiu abraçada. Fungou muito antes de finalmente adormecer, mas enfim, conseguiu. Ela era uma criança. Tinha a vida toda pela frente e logo superaria isso. Era hora de eu ir embora. Mas não o fiz e aquela seria a primeira de muitas vezes que continuei ali, sem dizer, fazer ou pensar em nada, absorto em vê-la dormir. Naquela época eu nem fazia idéia da terrível armadilha na qual eu estava entrando de livre e espontânea vontade. O que havia de tão fascinante nela? Por que eu sentia como se não quisesse fazer mais nada além de estar ali? Eu não consegui responder essa pergunta naquela noite e jamais consegui responder até hoje. Sorri involuntariamente ao vê-la se mexer. Já chega Gabriel. É hora de partir. Disse para mim mesmo e com isso consegui reunir a força necessária para me erguer novamente e me dirigir até a janela. Eu não deveria precisar de tanta força de vontade assim para simplesmente sair, mas precisei.
Andei até a abertura como se minhas pernas estivessem presas por bolas de chumbo e quando cheguei bem próximo de sair, escutei algo que me fez voltar. Um gemido, muito próximo ao choro, me chamou de volta a atenção para ela. Foi quando a vi, contorcendo-se em seu leito, agarrando com força as cobertas e se remexendo. Seus olhos crispados completavam o retrato da dor que sentia e mais uma vez aquilo me incomodou. Olhei para os lados esperando que alguém pudesse vir e tirá-la daquele pesadelo terrível, mas parecia que ninguém na casa escutava seu pranto contido. Eu a olhava, desejando loucamente que ela parasse. Não agüentava mais ouvir aquilo. Não de novo, não dessa forma. Por algum motivo ele era forte demais para mim, me destruía por dentro. E foi quando cometi o primeiro de muitos erros que se seguiriam depois. Sem pensar em nada, coloquei minha mão carinhosamente sobre sua testa úmida.
Não precisou de muito tempo para que ela parasse. Um sorriso lindo cortou seus lábios e ela relaxou. Mas aquele gesto me deixou uma marca. Pois naquele instante eu senti um calor agradável na mão. Aquele toque havia despertado em mim uma sensação, até então, nunca antes experimentada: uma centelha do que seria o calor humano.
Como se aquele toque pudesse produzir chamas que me consumiria, eu retirei a mão rapidamente e olhei assustado em volta. Ninguém. Temendo a mim mesmo depois dali, voei pela janela e desapareci, prometendo não voltar.

Mas eu voltei. No dia seguinte e no outro. Voltei durante quinze anos. Assim como voltara agora. Durante o processo, eu a vi crescer. Vi quando foi à escola pela primeira vez e quando as meninas de sua turma foram más com ela. Vi quando teve seu primeiro namorado e sua primeira vez. Vi quando entrou para a faculdade e quando se formou. Eu também estava lá quando perdeu seus outros parentes: seu avô materno e paterno, ambos vítimas de ataque cardíaco. E nesse instante eu percebi que algo havia mudado nela, pois Clara não chorou por nenhuma dessas perdas. Assim como não chorou quando aquele seu primeiro namorado a traiu com uma de suas amigas. Ela não chorou mais. Nem quando se machucava na rua, nem quando brigava com os amigos ou não conseguia aquilo que mais desejava. Nenhuma vez lágrimas saíram de seus olhos.
E a todo o momento eu estava lá ao seu lado, sem que ela nunca suspeitasse. Sempre presente, desde suas visitas à cachoeira de São Donato aonde gostava de ver o véu d’água, até as visitas ao cemitério aonde levava flores para o túmulo de seus entes queridos. Nunca notado... Assim como acontecia agora...
Ela estava dormindo e eu vigiando seu sono. Vigiando, guardando e também... Esperando. Esperando o que sempre acontecia para que pudesse agir. E não foi diferente aquela noite. Nesse instante, mais um gemido se fez ouvir e seu rosto doce se contorceu de dor. Mais um pesadelo. Ela parecia ser uma espécie de chamariz para eles e mais uma vez algo de ruim se passava pela sua cabeça, atrapalhando-lhe o sono. Hoje, ela não era mais uma garotinha, era uma mulher. Mas sua dor ainda era capaz de me destruir como antes e eu acabei cometendo o mesmo erro de anos atrás. O mesmo erro que cometi durante esses quinze anos em que a acompanhei e a confortei, permitindo aquele toque perigoso que me enchia de culpa e nojo, mas também, me dava um alívio digno de um viciado. Hoje eu já não podia dizer se fazia isso por ela ou por mim.
E funcionou. Ela se acalmou.
— Gabriel — escutei no mesmo instante a voz atrás de mim me chamar e logo me virei como uma criança que é pega diante de uma travessura.
— Eu... — quis explicar, mas não tinha o que dizer. Ela havia visto tudo. Sem ter o que argumentar, limitei-me a olhar para o chão escondendo minhas feições culpadas. Quando finalmente obtive coragem, ergui o rosto e meus olhos se encontraram com os dela. Apesar de minha atitude desprezível, Abigail não parecia irritada. Seus olhos cor de avelã, pelo contrário, me olhavam com pena e compaixão.
Uma mulher de aparência jovem, morena e de longos cabelos cacheados e pretos, estava ali. Aquela aparência juvenil que escondia sua real idade milenar igual a mim. Como eu, ela era um Ceifeiro, ela era um anjo. Atrás dela, asas negras saiam-lhe das costas. Estas também, iguais as minhas.
— Gabriel. — disse com a voz doce, como uma mãe que vê com tristeza o filho ir para a guerra ou fazer qualquer tipo de coisa perigosa. — Você sabe como é perigoso o caminho pelo qual está indo.
É. Eu sabia. E o fato de Abigail ser tão doce comigo, assim como fora tão doce vendo meus erros durante esses quinze anos, me enchia de culpa. Pois eu queria fazer por merecer todo o amor e dedicação que ela me dava.
— Perdão Abigail... — foi tudo o que consegui dizer e sem esperar mais nada, ela veio e me abraçou, deixando meu rosto ser encoberto por seus longos cachos. Apesar de intenso, aquele toque não tinha o calor de Clara, que tanto me viciara. Isso por que Abigail não era humana. Mas aquilo era confortante, e isso já valia.
—Perdão — repeti e ela me calou.
— Vamos — disse simplesmente — Você também deve ter ouvido o Chamado.
É. Eu ouvira. Era hora do trabalho. Então, juntos voamos pelas janelas e desaparecemos na escuridão da noite.



3 comentários:

  1. Nossa, Will! Que legal!!!!!

    Gostei desse trecho do livro!!! =D

    Mas, eu queria perguntar: Você disponibilizar em e-book tbm? (kkkkkkkkkkkkkkkkk)! ;D

    ResponderExcluir
  2. rsrs
    Esse eu já não sei. Tudo vai depender se eu encontrar alguma editora interessada ou não.
    Abração

    ResponderExcluir
  3. W. Muito bom. Quando acabei de ler esse trecho, fiquei com gostinho de quero mais.
    Coloca mais um trecho ai.
    Bjks

    ResponderExcluir