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domingo, 3 de junho de 2012

Resenha: Gula-Belzebu (Volume 2 da Série VII Demônios)


AMADO, M. B. BORGES, Celly (orgs.). Gula-Belzebu. Série: VII Demônios, Belo Horizonte: Editora Estronho, 2012.
Aqueles que me conhecem sabem que eu não gosto de fazer avaliação crítica de minha própria produção. Por conta disso, farei esta resenha atentando-me apenas aos demais contos e deixarei algum crítico melhor qualificado para avaliar meu trabalho, “Um pequeno pedaço do paraíso”, que se encontra inserido nesta antologia.

A série VII Demônios se propõe a reunir contos em língua portuguesa que girem em torno do universo dos sete pecados capitais, contando com o toque macabro da demonologia cristã da Idade Média, que atribuiu a cada pecado um demônio responsável.

E é com esta missão que os autores – doze concursados e um convidado - se inseriram neste universo pecaminoso. O primeiro conto, “Banquete”, de Raphael Montes, traz uma história bem escrita, girando em torno do drama de uma família, moradores de uma vila carente de alimentos onde eles são os únicos que ainda possuem o que comer. O trabalho é bem elaborado, todavia, parece se perder em uma reviravolta alucinante ao final do escrito. O final do conto surpreende, mas parece a olhos de alguns um tanto quando desconectado do resto da história.

“Ponto de Contato”, do convidado Eric Novello, tem ares de uma parte de uma história maior. A gula em si não foi bem trabalhada, parecendo mais um apêndice dentro do conto e não o fio condutor da história. Com personagens próprios em um universo bem característico do Word of the Dark, o conto narra a saga de Fabrício, um Guará – raça aproximada dos lobisomens – que se insere em um combate a uma criatura misteriosa que parece se alimentar de sua energia. A estória, como disse, parece compor algo maior, deixando talvez alguns um tanto quanto carentes de mais explicações. Eu, em contrapartida, fico mais é curioso para saber se existem mais histórias desse universo no trabalho de Novello.

O leitor que não tenha estômago forte com certeza se chocará com “Beelzebub carne vorare”, onde Marius Arthorius nos narra uma brincadeira de quatro jovens em invocar uma entidade demoníaca. Brincadeira essa que deu muito errado, ou será que deu certo demais? A narrativa é banhada de sangue e voracidade. Um pouco gratuita e indigesta em alguns momentos, deve-se acrescentar.

A estória de Valentina Silva Ferreira é bastante interessante, mas “Condenado” é outro que carece do tema da gula como fio condutor, apresentando-se mais como um detalhe em meio ao enredo. Esta conta a vida de um menino, que em meio à miséria em que vive e às negligências da mãe, encontra em um prazer um tanto quanto obscuro a forma de se entreter na vida. A escrita da autora é excelente e o desfecho, apesar de um pouco desconexo, surpreende.

Eis em que chego a um de meus favoritos no livro: “Bom Gourmet”, de Lemos Milani. Este conto nos mostra um grande cozinheiro, cujo paladar se torna mais apurado e carente de algo novo no cardápio depois da visita de um estranho cliente. A história é ágil, o estilo do autor é excelente, e parece muito influenciado pela escrita machadiana, em especial na sua forma de dialogar com o leitor.  E apesar de o autor já lançar mão logo no início de vários elementos do seu trabalho, não se espante, pois até as páginas finais ainda há grandes surpresas.

O ambiente medieval retorna em “Tributo a El-Rei”, onde, para se livrar de um tirano terrível e guloso, uma família decide por enganá-lo em um concurso de guloseimas, onde a epígrafe de conto se faz forte: “o peixe morre pela boca”. Uma boa história escrita por Amanda Reznor, bem estruturada e em bom tom do início ao fim.

Depois de Amanda temos o conto de um sujeito simpático e bem atraente chamado... Ops! Desculpem. Prometi não falar de “Um pequeno pedaço do paraíso” (risos).

Enfim, “A ficha criminal da Juíza” compete, para mim, pelo título de melhor trabalho da antologia, junto com “Bon Gourmet”. Uma história leve, bem humorada, que só por isso já nos é agradável pelo fato de fugir da penumbra dos demais contos. Some-se isso à narrativa elegante e ao enredo bastante atraente de Claudia Zippin Ferri e temos uma ótima história que conta as peripécias de uma juíza que, atormentada por sonhos onde sua gula incansável por doces a obriga a cometer os mais alucinantes delitos, começa a repensar seu papel frente a uma sociedade repleta de crimes e perdões.

“Abismo Visceral” é outra grande surpresa, principalmente por compor uma saga que pode transpassar toda a série. Marcelo Augusto Claro nos apresenta Eldritch, um demônio empenhado em acabar com os sete grandes chefões do inferno. Logicamente, esses sete são os grandes demônios pecaminosos. Marcelo se apresenta como um grande mestre de RPG, por nos proporcionar uma leitura eletrizante e bastante sombria. No tom que eu gosto.

Trazendo uma novidade ao entendimento de fome e gula, Fabiane Guimarães conta em “O devorador de almas” a história de um demônio menor, que vaga de região em região tentando saciar a fome de seu mestre e assim conseguir a liberdade de sua alma. Mercúrio é um ótimo personagem, e a narrativa em que ele está inserido é sucinta e bem estruturada.

Verônica Freitas traz em “A filha do mau” um enredo que mescla contos de fadas com a série de TV Sobrenatural, onde uma família em viagem, ao ter o carro enguiçado no meio da estrada, caminha atrás de ajuda até encontrar a casa de uma doce velhinha... A história possui personagens muito bons e um enredo que flui naturalmente aos olhos do leitor. Parabéns à Verônica.

Acredito que “O Voo da mosca” foi o conto que melhor atingiu o objetivo da ontologia. Nele, Lino França Junior traz a temática da Gula muito bem inserida, e a participação de nosso ilustre Belzebu é digna de nota. Uma mãe dedicada em alimentar seus dois filhos, submetida a um homem agressivo e negligente, que pouco a ajuda nas despesas da casa, e uma mosca insistente, compõem a trama desta intrigante história.

E por último, mas não menos importante, temos “Banquete de Maná e a Oração da Unificação”, em que Ghad Arddhu nos cria um universo novo, onde as forças demoníacas comandam o planeta e um clima de guerra é constante e presente em toda a narrativa. Dentro deste mundo sombrio e perigoso, temos um jovem que, compactuado com Belial, joga neste mundo com as forças que nele regem. O trabalho é ótimo e rende um bom entretenimento. E o título, apesar de grande, é bastante cabível à ideia da obra.



Para fins de conclusão, acho interessante concluir a resenha com uma provocação. Pois me é importante salientar como a temática da antropofagia é algo constante ao longo da antologia. E tal escolha não me parece gratuita, visto que na nossa sociedade ocidental, influenciada pelo cristianismo e pela cultura grega, o tema se apresenta como a maior manifestação de gula possível. Digo isto, pois, é inegável que para se saciar a fome de comer outro ser humano, um indivíduo deva realmente passar por cima de todos os valores construídos em sua tradição. Buscar dentro de si uma força e uma monstruosidade digna de passar por cima de tudo que lhe é construído como justo, racional, ou humano.

Enfim, fica esta observação. E faço a todos um convite a conhecer este trabalho que me deu muito orgulho em participar e competir entre meus pares.

E encerro desejando-lhes uma boa leitura.

Um comentário:

  1. Tentei participar da coletânea, mas creio que meu conceito de gula está longe dos conceitos tradicionais que as pessoas possuem. De qualquer forma, fico feliz por você e tenho certa curiosidade em ler o livro depois de sua resenha.
    Abraços...

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