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quinta-feira, 21 de junho de 2012

Resenha: A casa dos budas ditosos, de João Ubaldo Ribeiro


O livro que compõe a sessão da luxuria na coleção “Plenos Pecados” da editora Objetiva cumpre muito bem a missão, trazendo-nos uma história que mescla um enredo sobre este tentador pecado e também reflexões que servem para desestabilizar o leitor, e forçá-lo a pensar de forma mais ampla.
Sem dúvidas que este não é um livro para pessoas sensíveis demais, ou tradicionais demais. Ou talvez seja, não sei ao certo. Só posso dizer uma coisa: se você não encarar este trabalho com a mente aberta, com certeza irá se decepcionar, ou até mesmo se ofender. Isto porque nossa ilustre personagem, Valentina, não tem travas na língua, não tem pudores e também não está preocupada em não chocar seu interlocutor. Na verdade, o que ela quer mesmo é chocar. Com essa proposta, ela nos narra a sua vida, comentando sobre quase todas as taras sexuais que nossa mentalidade ocidental pode imaginar: orgias, incesto, voyeurismo, sadismo, zoofilia, entre outras e tantas outras.
Confesso que tive certas dúvidas ao reconhecer o caráter biográfico da autora. Pelo que Ubaldo nos conta, quando foi anunciado que ele seria o escritor responsável pelo romance sobre a luxuria, o autor haveria de ter recebido os relatos dessa tal Valentina, uma mulher já bem madura e interessada em ter sua história contada. Ela então, sem divulgar o nome das pessoas realmente envolvidas e , muito menos, o seu próprio, nos narra os casos de sua vida.
Vamos combinar que quando o assunto é falar sobre sexo e todos os desejos que podem acometer um ser humano, este perfil – uma mulher de meia idade – é o melhor e talvez o mais aceitável para falar no assunto. Primeiro, pois nossa sociedade masculina ainda possui fortes entraves para contar abertamente de seus desejos, segundo, porque, ao avançar da idade, tendemos a tolerar mais esses tipos de comentários. Quem de nós nunca teve uma avó ou outro exemplo de pessoa mais velha que não ficasse mais desbocada e, em alguns casos, mais assanhada depois de cruzar o Cabo da Boa Esperança? É um perfil que aceitamos melhor. Já um homem respeitado no meio intelectual, pai de família e maduro, isso já arrancaria certos olhares tortos dos leitor.
Posso estar apenas especulando, mas como a própria Valentina nos liberou para fantasiarmos a vontade, sendo livres para acreditarmos e desacreditarmos no que quisermos acerca de sua narrativa, então eu me ponho no direito de acreditar que um pouco de Ubaldo também esteja neste livro. Na verdade, um pouco de todos nós, meros mortais e pecadores em potencial.
Enfim, um detalhe que não pode me fugir é o estilo do trabalho. Muito interessante a proposta do autor em preservar o tom discursivo da personagem. Ao lermos “A casa dos budas ditosos”, temos de fato a impressão de escutar uma pessoa nos falando apressadamente, sem pausas para respirar, como que se estivesse com pressa de nos contar tudo antes que o mundo fosse acabar amanhã. Para tando, a pontuação do livro acabou bastante comprometida, deixando o leitor até mesmo perdido e com dor de cabeça nas páginas iniciais. Todavia, acostumado ao ritmo do trabalho, aposto que todos conseguirão entrar no ritmo da história e ter a sensação daquela voz feminina e madura sussurrando ao seu ouvido, como se estivesse do seu lado contado a história. Pelo menos eu tive essa sensação.
E é por tanto que eu recomendo este trabalho, tanto por seu caráter desafiador em uma sociedade que, apesar de moderna, ainda se mantém hipócrita com relação a alguns assuntos, como também pela qualidade do trabalho. Valentina, sendo uma mulher real ou apenas literárias é sem dúvidas bastante humana. Com todas as inseguranças ocultas e travestidas em sua armadura de imparcialidade com relação ao tema, e também bastante incoerente em meio a chuva de relatos e reflexões que faz acerca do pleno pecado da luxuria. 

Resenha: O Leitor, de Bernhard Schlink


A história se passa na Alemanha Ocidental do Pós Segunda Guerra mundial, um país já completamente reestruturado do ponto de vista da sua economia e de suas edificações, contudo, ainda fortemente destruído quanto a sua memória. A sombra dos crimes nazistas ainda faz parte do dia a dia desse povo, seja de forma declarada ou não, seja por aqueles que realmente vivenciaram e participaram dos crimes ou não. Neste contexto, Michael, de 15 anos, conhece Hanna de 36, e de seus encontros e desencontros, segredos e mentiras, e das suas descobertas literárias e sexuais, tece-se o enredo de “O leitor”.
Schlink possui um estilo muito próprio: sucinto, objetivo e até mesmo seco em alguns pontos. Sua história se passa de forma dinâmica, sem enrolação, mas também carente da emoção que talvez fosse necessária. Todavia, acredito que este estilo áspero e direto acabe por servir muito bem para a história, pois a apatia da narrativa, mesclada com a própria apatia das personagens e do ambiente em que estão inseridos, torna o trabalho um tanto cinzento e terno, que muito serve para a proposta da história.
Dividida em três temporalidades, onde as personagens principais encontram e se desencontram. Nestas passagens, temos a transformação de Michael, que passa de um garoto imaturo que é iniciado sexualmente por Hanna, para um jovem estudante de direito que, ao realizar um curso na sua universidade onde os alunos assistem aos julgamentos dos criminosos de guerra do período do nazismo, reencontra Hanna no banco dos réus. E por fim, já adulto, divorciado e pai de família, restabelece o contato com seu amor de juventude revivendo um dos momentos mais marcantes de sua história: os momentos em que lia para ela.
Posso dizer com toda a segurança que a parte dois do livro é a mais empolgante, pois nos coloca diante de uma realidade tão absurda e ao mesmo tempo tão próxima, que desafia a nossa compreensão. Que nos coloca diante de nosso lado mais racional e, por isso, também mais sombrio. Infelizmente não posso falar mais sobre essa parte sem soltar spoillers desagradáveis. Então, fica apenas a dica de se aventurar por estas páginas que garantem mais que uma história de amor e desilusões, mais do que um relato sobre o período pós segunda guerra, mas uma oportunidade de cada um de nós reavaliar a condição humana. 

domingo, 17 de junho de 2012

Resenha: México Rebelde, de John Reed



REED, John. México Rebelde, tradução: Mary Leite de Barros, Segunda edição, Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1978.



O livro de John Reed se propõe a relatar minuciosamente a realidade em torno da Revolução Mexicana, aproveitando-se assim da própria experiência do autor e sua narrativa jornalística que caracteriza o gênero de seu trabalho; Reed fora enviado para cobrir o movimento revolucionário no ano de 1913 pela revista Metropolitan Magazine. Do ponto de vista da escrita, por tentar trazer o máximo de precisão para a obra, a linguagem objetiva do autor ganha pontos, todavia, na perspectiva literária, perde-se em qualidade pela falta de fluidez e cuidado estético para com a mesma.

A narrativa de “México rebelde” preocupa-se em relatar as experiência do autor acerca dos acontecimentos envolvendo os revoltosos, sem buscar a imparcialidade pretendida por muitos jornalistas. A simpatia de John Reed pelo movimento e pelas pessoas que dele participaram é sentida claramente ao longo da história e seu viés esquerdista tão pouco é ocultado ao leitor. Contudo, algumas visões apresentadas no livro parecem fornecer uma crítica, mesmo que de forma despercebida ao próprio autor, sobre a dita revolução. Desta maneira, “México rebelde”, além de uma simples narração de fatos se mostra uma perspectiva interessante acerca da vivência insurreta mexicana, pois apesar de fruto de um olhar condizente com a causa, ainda assim é uma visão externa aos agentes históricos do processo. A respeito destas características do trabalho, vamos por partes.

Sobre o relato minucioso, podemos dizer que seus capítulos não poupam o leitor da brutalidade do movimento. Cenas de puro horror, com homens despedaçados e lutas acirradas banham as páginas de sangue, e a miséria do povo mexicano é evidente em toda a narrativa. Contudo, apesar das dificuldades, este é também um grupo feliz, solidário e que aproveita as noites de calma para festejar. As personagens da história, em sua grande maioria, são camponeses com pouca ou nenhuma instrução, famintos, membros de um grupo que vive a margem da sociedade mexicana. Todos possuem necessidades imediatas que precisam ser atendidas e enxergam na revolução a possibilidade de mudança para suas vidas. Um sentimento verdadeiro deve-se dizer, acerca do envolvimento destes homens com a luta revolucionária. Os insurgentes de Reed nos são apresentados como pessoas realmente honestas e dispostas a encarar uma luta por um ideal, que em seus horizontes se mostra como verdadeiro. Porém, quando falamos deste ideal, este parece carecer de precisão de acordo com a concepção do autor.

Pancho Villa é a figura central em “México Rebelde”. Sua liderança é o elemento de coesão dessa massa tão disforme e desorientada. Pancho, na narrativa, parece se mostrar como o único ideal realmente presente na mente da maioria dos envolvidos. Assim, o que se mostra importante a destacar é que “México rebelde” acaba por incitar ao leitor que o movimento mexicano demonstrava fraquezas no que diz respeito a uma ideologia comum. Os revoltosos seguem seu líder sem necessariamente questionar, escassos de um viés para além dele que oriente seus projetos de futuro. O único projeto realmente visado é a mudança, mas para onde não se sabe.

É neste ponto que o título da obra mostra-se menos inocente. Ao titular o trabalho como “México Rebelde” ou “México insurgente” e não “México revolucionário”, revela-se uma concepção acerca da agitação. Para os idealizadores do título, o levante mexicano não possui potenciais revolucionários, talvez por ser uma investida realizada por pessoas sem instrução e sem ideais revolucionários pautados em uma ideologia comum – como o iluminismo, comunismo ou anarquismo, para citar os que estavam em voga no período. A arruaça dos camponeses, carentes de ideologia, fartos de necessidades e esperançosos com o que o futuro lhes reserva.


terça-feira, 12 de junho de 2012

Debaixo das sombras do passado.


Apesar de todo o presentismo de nossa atual sociedade, onde o que vale é o aqui e o agora, não podemos desprezar o peso que o passado ainda exerce sobre os nossos ombros. Além de sermos constantemente comparados com as gerações anteriores – principalmente pelos saudosistas que insistem em pregar aos quatro ventos como antigamente as coisas eram melhores – a todo o momento temos sob nossas cabeças os paradigmas estabelecidos pelos exemplos que vieram antes de nosso nascimento.

Na escrita, como em toda a área, temos os grandes gênios cuja mitologia construída em torno deles os tornam inalcançáveis. Apropriando-me de Nietzsche posso dizer que todo o escritor hoje já nasce castrado. Pois por melhores que sejamos, jamais seremos tão bons quanto Machado de Assis, ou José de Alencar. Nunca, por mais que queiramos e nos esforcemos, chegaremos perto de suas grandezas. E tal castração – muitas vezes autoimposta - nos é forçada pela nossa própria tradição, que galgou um lugar especial para os clássicos de tal forma que, monumentalizando-os, transformara-os em gigantes cuja sombra sob o presente nos impede de enxergar nossos próprios titãs.

E tal perspectiva não é de todo o estranha se compreendermos que o presente é realmente um ambiente bastante infértil para a percepção dos próprios potenciais, por ser tão instável e incerto. Artistas hoje vem e vão. Quais vingarão, não sabemos. Muitos são estrelas que podem permanecer por milhões de anos iluminando o cosmos, mas a maioria não passa de fogos de artifício, que somem após alguns instantes de brilho. E isso não é uma prerrogativa do presente. No passado também existiram escritores que não vingaram, que por não conseguirem marcar a história, desapareceram no tempo. Contudo muitas vezes esquecemos disso, pois tudo o que temos do passado é o que nos foi deixado de herança, o que sobreviveu.

Aristóteles, Agostinho, Kant, Lima Barreto e tantos outros que chegaram a nós nada mais são do que os sobreviventes de um verdadeiro genocídio literário, onde tantos outros autores pereceram. A única diferença entre os titãs de hoje e os de ontem é que estes já passaram por seu tempo e chegaram ao nosso, e sabemos disso. Já os nossos ainda estão em transição para o futuro e jamais saberemos se chegarão ou não, pois até lá iremos perecer. O passado, ao contrário do presente, já nos parece um terreno mais preciso, pois o caos já passou e por isso os homens de hoje são capazes de olhar para ele e ver os seus erros e acertos. Os clássicos já são clássicos, já chegaram a nós, já se firmaram, por isso são geniais.

Quantos autores hoje não se inferiorizam perante os grandes autores de outrora? Quantos não duvidam de sua própria capacidade? E quantos não se castram por conta disso? Mas será que somos só nós? Que os nosso gênios também não passaram por tais situações? Será que eles realmente, desde seus nascimentos, tinham certeza do lugar que ocupariam na história do mundo? Logicamente que não.

Eles também viveram incertezas, também foram inseguros, também tiveram seus próprios paradigmas, criados por outros gênios que os antecederam, que faziam sombra sobre eles. E foi nessa relação onde, seja tentando imitar a grandeza do seu ídolo, seja se contrapondo a ela, querendo se impor perante o passado, que conseguiram também firmar seus lugares em nosso panteão. E, infelizmente, a maioria deles não chegaram a saber nunca que se tornaram clássicos, pois este título só lhes foi ofertado após o fim de suas existências.

Desculpem o tom de autoajuda deste escrito, mas é sim importante salientar que por mais grandioso que o passado possa nos parecer, não podemos esquecer que o presente também guarda seus próprios gigantes, que estão escondidos sob as sombras, apenas esperando o momento certo de despontarem. E qualquer um de nós pode ser um desses pequenos gigantes que marcarão presença no futuro. Qualquer um.

E tal pensamento pode parecer otimista demais, pois realmente estamos inseguros com nossos futuros. Não sabemos para onde vamos, o que nos espera no fim, mas isso é normal. Basta cada um de nós parar para pensar em nossas vidas e ver quantas coisas hoje nos fazem sentido mas antes, enquanto elas de fato aconteciam, não eram verdadeiros terrores para nossas existências. E quanto a isso me refiro a tudo, desde os amigos que fizemos, as escolhas vocacionais que realizamos, os esforços que empregamos para conseguir vencer na vida. Todas essas coisas, no momento em que estão sendo realizadas são verdadeiras entropias. São como espadas de Dámocles, pendidas sob nossas cabeças por curtos fios que podem se romper a qualquer momento e nos decapitar em questão de segundos. Mas depois que passamos por elas e conseguimos olhar para trás, aí sim somos capazes de ver que tudo fez sentido, seja pelos nosso acertos que nos trouxeram até aqui, seja pelos nossos erros aos quais, apesar de ruins, sobrevivemos a eles.

domingo, 3 de junho de 2012

Resenha: Gula-Belzebu (Volume 2 da Série VII Demônios)


AMADO, M. B. BORGES, Celly (orgs.). Gula-Belzebu. Série: VII Demônios, Belo Horizonte: Editora Estronho, 2012.
Aqueles que me conhecem sabem que eu não gosto de fazer avaliação crítica de minha própria produção. Por conta disso, farei esta resenha atentando-me apenas aos demais contos e deixarei algum crítico melhor qualificado para avaliar meu trabalho, “Um pequeno pedaço do paraíso”, que se encontra inserido nesta antologia.

A série VII Demônios se propõe a reunir contos em língua portuguesa que girem em torno do universo dos sete pecados capitais, contando com o toque macabro da demonologia cristã da Idade Média, que atribuiu a cada pecado um demônio responsável.

E é com esta missão que os autores – doze concursados e um convidado - se inseriram neste universo pecaminoso. O primeiro conto, “Banquete”, de Raphael Montes, traz uma história bem escrita, girando em torno do drama de uma família, moradores de uma vila carente de alimentos onde eles são os únicos que ainda possuem o que comer. O trabalho é bem elaborado, todavia, parece se perder em uma reviravolta alucinante ao final do escrito. O final do conto surpreende, mas parece a olhos de alguns um tanto quando desconectado do resto da história.

“Ponto de Contato”, do convidado Eric Novello, tem ares de uma parte de uma história maior. A gula em si não foi bem trabalhada, parecendo mais um apêndice dentro do conto e não o fio condutor da história. Com personagens próprios em um universo bem característico do Word of the Dark, o conto narra a saga de Fabrício, um Guará – raça aproximada dos lobisomens – que se insere em um combate a uma criatura misteriosa que parece se alimentar de sua energia. A estória, como disse, parece compor algo maior, deixando talvez alguns um tanto quanto carentes de mais explicações. Eu, em contrapartida, fico mais é curioso para saber se existem mais histórias desse universo no trabalho de Novello.

O leitor que não tenha estômago forte com certeza se chocará com “Beelzebub carne vorare”, onde Marius Arthorius nos narra uma brincadeira de quatro jovens em invocar uma entidade demoníaca. Brincadeira essa que deu muito errado, ou será que deu certo demais? A narrativa é banhada de sangue e voracidade. Um pouco gratuita e indigesta em alguns momentos, deve-se acrescentar.

A estória de Valentina Silva Ferreira é bastante interessante, mas “Condenado” é outro que carece do tema da gula como fio condutor, apresentando-se mais como um detalhe em meio ao enredo. Esta conta a vida de um menino, que em meio à miséria em que vive e às negligências da mãe, encontra em um prazer um tanto quanto obscuro a forma de se entreter na vida. A escrita da autora é excelente e o desfecho, apesar de um pouco desconexo, surpreende.

Eis em que chego a um de meus favoritos no livro: “Bom Gourmet”, de Lemos Milani. Este conto nos mostra um grande cozinheiro, cujo paladar se torna mais apurado e carente de algo novo no cardápio depois da visita de um estranho cliente. A história é ágil, o estilo do autor é excelente, e parece muito influenciado pela escrita machadiana, em especial na sua forma de dialogar com o leitor.  E apesar de o autor já lançar mão logo no início de vários elementos do seu trabalho, não se espante, pois até as páginas finais ainda há grandes surpresas.

O ambiente medieval retorna em “Tributo a El-Rei”, onde, para se livrar de um tirano terrível e guloso, uma família decide por enganá-lo em um concurso de guloseimas, onde a epígrafe de conto se faz forte: “o peixe morre pela boca”. Uma boa história escrita por Amanda Reznor, bem estruturada e em bom tom do início ao fim.

Depois de Amanda temos o conto de um sujeito simpático e bem atraente chamado... Ops! Desculpem. Prometi não falar de “Um pequeno pedaço do paraíso” (risos).

Enfim, “A ficha criminal da Juíza” compete, para mim, pelo título de melhor trabalho da antologia, junto com “Bon Gourmet”. Uma história leve, bem humorada, que só por isso já nos é agradável pelo fato de fugir da penumbra dos demais contos. Some-se isso à narrativa elegante e ao enredo bastante atraente de Claudia Zippin Ferri e temos uma ótima história que conta as peripécias de uma juíza que, atormentada por sonhos onde sua gula incansável por doces a obriga a cometer os mais alucinantes delitos, começa a repensar seu papel frente a uma sociedade repleta de crimes e perdões.

“Abismo Visceral” é outra grande surpresa, principalmente por compor uma saga que pode transpassar toda a série. Marcelo Augusto Claro nos apresenta Eldritch, um demônio empenhado em acabar com os sete grandes chefões do inferno. Logicamente, esses sete são os grandes demônios pecaminosos. Marcelo se apresenta como um grande mestre de RPG, por nos proporcionar uma leitura eletrizante e bastante sombria. No tom que eu gosto.

Trazendo uma novidade ao entendimento de fome e gula, Fabiane Guimarães conta em “O devorador de almas” a história de um demônio menor, que vaga de região em região tentando saciar a fome de seu mestre e assim conseguir a liberdade de sua alma. Mercúrio é um ótimo personagem, e a narrativa em que ele está inserido é sucinta e bem estruturada.

Verônica Freitas traz em “A filha do mau” um enredo que mescla contos de fadas com a série de TV Sobrenatural, onde uma família em viagem, ao ter o carro enguiçado no meio da estrada, caminha atrás de ajuda até encontrar a casa de uma doce velhinha... A história possui personagens muito bons e um enredo que flui naturalmente aos olhos do leitor. Parabéns à Verônica.

Acredito que “O Voo da mosca” foi o conto que melhor atingiu o objetivo da ontologia. Nele, Lino França Junior traz a temática da Gula muito bem inserida, e a participação de nosso ilustre Belzebu é digna de nota. Uma mãe dedicada em alimentar seus dois filhos, submetida a um homem agressivo e negligente, que pouco a ajuda nas despesas da casa, e uma mosca insistente, compõem a trama desta intrigante história.

E por último, mas não menos importante, temos “Banquete de Maná e a Oração da Unificação”, em que Ghad Arddhu nos cria um universo novo, onde as forças demoníacas comandam o planeta e um clima de guerra é constante e presente em toda a narrativa. Dentro deste mundo sombrio e perigoso, temos um jovem que, compactuado com Belial, joga neste mundo com as forças que nele regem. O trabalho é ótimo e rende um bom entretenimento. E o título, apesar de grande, é bastante cabível à ideia da obra.



Para fins de conclusão, acho interessante concluir a resenha com uma provocação. Pois me é importante salientar como a temática da antropofagia é algo constante ao longo da antologia. E tal escolha não me parece gratuita, visto que na nossa sociedade ocidental, influenciada pelo cristianismo e pela cultura grega, o tema se apresenta como a maior manifestação de gula possível. Digo isto, pois, é inegável que para se saciar a fome de comer outro ser humano, um indivíduo deva realmente passar por cima de todos os valores construídos em sua tradição. Buscar dentro de si uma força e uma monstruosidade digna de passar por cima de tudo que lhe é construído como justo, racional, ou humano.

Enfim, fica esta observação. E faço a todos um convite a conhecer este trabalho que me deu muito orgulho em participar e competir entre meus pares.

E encerro desejando-lhes uma boa leitura.

sábado, 2 de junho de 2012

Resenha: Mal secreto, Zuenir Ventura


VENTURA, Zuenir. Mal secreto: Inveja, Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.
Engraçado que justamente no momento em que são publicados os contos da série “VII Demônios” da Editora Estronho, eu acabe por descobrir que há três anos a editora Objetiva lançou, ela também, uma coleção denominada “Plenos Pecados”, onde convidou autores consagrados da literatura brasileira para escreverem romances acerca dos sete pecados capitais. Estes, sem trazer o universo sobrenatural próprio da proposta da Estronho, parecem se focalizar mais em histórias “pés no chão” e que me chamaram a atenção para a leitura.

O primeiro livro que eu encontrei por puro acidente foi “Mal Secreto”, onde Zuenir Ventura discorre acerca da Inveja. Trata-se antes de tudo de uma leitura dinâmica. Uma escrita muito bem apurada e uma linguagem fluida da mais alta qualidade. Contudo, todo o seu rigor estético não impediu que eu me decepcionasse com o livro.

Digo decepcionar porque eu, ao adquirir meu exemplar, esperava encontra de fato um romance acerca da inveja. Nesse sentido, uma história onde o pecado fosse o fio condutor do enredo e estivesse presente a todo o momento, mesmo que de forma não professada, sendo a essência do trabalho. E não foi isso o que encontrei.

Zuenir apresenta sua própria história, quando aceitou escrever o livro, mostrando toda a pesquisa feita, que não foi pouca, e a reflexão teórica que ela lhe instigou. Reunindo um bom apanhado, com direito a pesquisas de opinião e a contribuição reflexiva retirada de teóricos no assunto, e ainda realizando um apanhado histórico que nos transporta para antes de Cristo, o livro é um prato cheio para aqueles atrás de se aventurarem acerca do conceito de inveja.

Todavia, no momento em que todo este apanhado deveria ser inserido na história que ele resolve contar – isso, diga-se de passagem, só acontece efetivamente ao chegar por volta da página 180 de um livro de 270 páginas (minha impressão é a em formato pocket, do selo “Ponto de Leitura”) – nada acontece. A curta história que nos é contada fica solta em um mar de páginas. Sem qualquer relação com toda a digressão intelectual da qual ele nos faz partilhar.

E por isso, e apenas por isso, o livro me decepcionou. Como já disse, não estou criticando a qualidade literária do autor, que pelo que me foi apresentado é de fato muito bom, mas não acredito que ele tenha sido feliz ao se aventurar por este universo.